Wednesday, November 19, 2008

Racismo no Brasil: das causas verdadeiras à hipocrisia política – e porquê eu sou contra cotas


Haiti

Composição: Caetano Veloso e Gilberto Gil

Quando você for convidado pra subir no lado
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque um batuque, um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco
Brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

Da letra de música acima, surge o cerne do problema “racial” brasileiro: o racismo no Brasil não é, e nem nunca foi, somente problema da concentração de melanina na pele, da cor dos olhos ou da textura dos cabelos. É bem mais complexo do que isso. Tanto que somos uma nação de mestiços, onde a união de brancos, negros e índios sempre foi lugar-comum na história do nosso povo. É um problema social, e não racial, como querem alguns. Ou alguém aí duvida que o branco pobre também não sofre o mesmo tipo de preconceito que o preto pobre? Ou o quase-branco? Ou o quase-preto?

Os comodistas, os canalhas e os aproveitadores de plantão vão sempre bradar a mesma ladainha, que esse é um meio de corrigir erros históricos, que é o único meio de incluir as classes menos favorecidas no país, e todo o blá, blá, blá demagógico padrão.

Bom, vamos analisar imparcialmente.

Existe realmente um erro histórico? Sim, parcialmente tem algo errado aí.

Mas porque disse parcialmente? Bem, para quem estudou um mínimo de história sabe que, quem caçava, estocava e comercializava os negros na África com os europeus que administravam as colônias na América eram... os próprios negros. Vejam bem, não estou querendo aliviar a responsabilidade dos brancos europeus nesse contexto todo, mas por outro lado seria hipocrisia excluir a parcela de responsabilidade Africana. A maldade humana, assim como o amor, senhoras e senhores, não tem cor. Penso eu que, se os povos da África não tivessem sido eles mesmos sociedades escavocratas desde sempre e que se tivessem se organizado em estados pluriculturais nos moldes de qualquer estado ocidental que conhecemos, talvez a história tivesse sido diferente de tal e qual a que conhecemos hoje. Ou pior, vai saber...

Esse é o único meio de democratizar a situação social no Brasil?

Não.

E eu reafirmo categóricamente: NÃO.

Na realidade, esse é outro e enorme erro.

Primeiro, porque não se corrige erros históricos da noite para o dia. Essa é a soluçãozinha mágica, hipócrita e eleitoreira que parasitas sociais, ops! digo! que os políticos brasileiros querem lançar mão. Um erro histórico requer um tempo razoável para ser corrigido. E o único – eu repito aqui: O ÚNICO – meio de se conseguir isso é através da educação.

E não estou falando da educação superior, a qual nunca foi o problema no Brasil e que sempre funcionou bem (se bem que com as tentativas incisivas do governo em exterminar com ela, eu não sei até quando isso vai durar, mas isso é assunto para todo um outro ensaio...). É na educação de base, como enfatizam bem Caetano e Gil logo no meio da letra de Haiti:

E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau

Para os “céticos” de plantão, temos um exemplo vivo disso diante dos olhos do mundo inteiro – o candidato eleito da corrida presidencial estadunidense: Barack Obama. Um negro (ou melhor, mulato, mas a mídia está fazendo vista grossa para esse fato) estar chegando ao principal posto político dos Estados Unidos – esse sim um país racista no sentido strictu sensu da palavra – é o resultado de uma educação igualitária (ainda que aquele país, eu repito, seja racista!). Lá, diferentemente daqui, não existem cotas raciais. Ao cidadão cabe conquistar seu lugar e prestígio na sociedade basicamente através de sua competência pessoal. E o meio (educação democratizada) é dado. Ainda que os EUA estejam 98 atrasados nesse particular – o Brasil teve o primeiro presidente de ascendência africana das Américas, Nilo Peçanha, entre 1909 e 1910 – esse é, com efeito, um grande feito em termos de democracia.

Vão argumentar que no Brasil isso nunca funcionou e que por isso as cotas são necessárias. Lorota. Temos vários, honrosos e valorosos casos de que essa é uma falsa premissa. Por exemplo, o intelectual Rui Barbosa, o escritor Machado de Assis, o Maestro Carlos Gomes, o político e farmacêutico José do Patrocínio, o engenheiro, geógrafo e historiador Teodoro Sampaio, e Antônio Pereira Rebouças Filho o engenheiro que no séc. XIV foi responsável pela construção da Estrada de Ferro de Campinas a Limeira e Rio Claro, da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá e da rodovia Antonina-Curitiba ou o já citado Nilo Peçanha, presidente da república, eram mulatos. Mas os cotistas de plantão vão voiciferar: ah! Mas não eram negros! Diante desse argumento pífio, eu devo me questionar: quem é racista aqui mesmo? OK, esses exemplos não eram “afro” o suficiente, pois estavam (sic) contaminados com sangue europeu.

Bem, talvez se eu citar o glorioso geógrafo (ha pouco falecido) Milton Santos, será que ele tem melanina o suficiente na pele para sossegar os ânimos dos racistas...ops! digo! os cotistas mais afoitos? Ou quem sabe o negro que comprou sua própria liberdade nos tempos de império e que foi o primeiro presidente do primeiro banco brasileiro (o Banco do Brasil)? Ou o advogado, abolicionista e negro, Luís Gama? Também não posso deixar de citar Juliano Moreira, um dos primeiros médicos negros do continente americano (talvez da história, se pensarmos na medicina nos moldes ocidentais) formado na Escola de Medicina da Bahia, ainda no sec. XVI, que além de tudo lecionava nessa mesma instituição? Ou nosso ex-ministro da cultura, Gilberto Gil (aqui os racistas, ops! digo! os cotistas de plantão vão dar xiliques, pitis e faniquitos gritando: Esse não vale! Ele é Artista!!!! Sim, ele é artista, mas é formado em Administração de Empresas com pós nos EUA e tudo mais. E, antes dele, o pai era médico – e tão negro quanto ele...). Ou Maria José Bezerra? Ou a Marisa, minha saudosa professora de matemática, que é negra também?

Eu pergunto para os racistas, ops! perdão novamente! os cotistas de plantão: haviam cotas raciais no tempo de todas essas pessoas?

O próximo passo dos defensores do racismo... ops! digo! das cotas raciais será: ah! Mas a imensa maioria dos negros continuam excluídos! Bom, e se ao invés de tentar privilegiar uma pequena parcela da população dita “negra” (sim, porque, por mais cotas que sejam inventadas, a imensa maioria dessa população ainda vai permanecer excluída), não democratizamos a coisa e asseguramos a todos o que está escrito na constituição: acesso universal a uma educação pública, gratuita e de qualidade? Para a população excluída não vai ser uma vantagem imediata, mas para seus filhos com certeza será. Os filhos e netos dos hoje excluídos viriam a ser os incluídos de amanhã, da forma justa, correta e honesta de se fazer a coisa.

Criar cotas para isso e aquilo, além de tornar o racismo oficialmente uma política de governo, é uma solução hipócrita, demagógica e que, convenhamos, não reolve nada. Só faz tapar o sol com a peneira. Eu, como pelo menos 80% da população brasileira, provavelmente posso ter também sangue africano correndo em minhas veias. Poderia esmiuçar a minha genealogia, achar um ou vários antepassados negros e alegar aos quatro ventos que sou afro-descendente, segundo as diretrizes do Movimento Negro brasileiro e que, portanto, tenho direito a minha cota: farinha pouca, meu pirão primeiro. E mesmo se não tiver ascendência africana, com certeza tenho ascendência ameríndia, daí poderia requerer a minha cota de minorias do mesmo jeito.

Mas eu não faço isso porque, além de ser uma adesão sumária e inequívoca a política racista e discriminatória do atual governo, da qual não compactuo, mesmo porque eu não faço distinção entre as pessoas por etnia, (1) minha ética não permite e (2) tenho plena segurança na minha competência profissional para pleitear uma vaga de trabalho onde quer que seja...

Mas aí eu me pergunto: e quem não tem nem uma coisa, nem outra (que, infelizmente, não são poucos no nosso país)?

Tristes tempos esses que nós vivemos.

Em tempo: este é um assunto delicado e complexo, e que certamente mexe com os brios de muita gente. Tudo o que escrevi acima é opinião pessoal minha, o que não significa que eu não possa mudar de opinião – isso vai depender, outrossim, do contexto e de razões que possam me levar a pensar diferente (ou não): eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.

Não espero que ninguém concorde 100% comigo, afinal, é apenas minha opinião pessoal. Aos que discordam do que escrevi, eu convido à reflexão. Eu mesmo li um sem número de matérias e ensaios pró- e contra-cotas antes de redigir o meu texto. E se mesmo assim alguém ainda ache indigesta minha opinião (lembrando que eu não obrigo e nem pretento fazer ninguém “engolir” a mesma), só posso incentivar a escrever/filosofar/divulgar o que você(s) acredita(m) que seja o contraponto à minha opinião – se ela for assim tão importante para você(s) ao ponto de precisar ser respondida/questionada/combatida. Só uma coisa eu não abro mão: respeite a minha opnião, assim como eu sempre vou respeitar a sua, mesmo que não concorde com ela.

Saturday, August 30, 2008

Audiência...



Fico imaginando quem é que lê meu Blog na Rússia e na Coréia do Sul...

Sunday, June 15, 2008

Críticas à Espanha



Após vários meses de silêncio, vou atualizar este blog com uma crítica a uma nação.

E essa nação é a Espanha.

Para o leitor mais afoito, ou politicamente correto, ou que simplesmente não gosta do que eu escrevo (ou de mim, não que eu me importe com isso), sugiro uma leitura imparcial do texto em sua integridade. Quem sabe isso poderá mudar a sua opinião.

Caso contrário, recomendo abandonar a leitura à partir daqui. Acredite: é um favor que estará prestando a si mesmo.

Antes de tudo, gostaria de esclarecer que eu mesmo sou descendente de espanhóis por parte de meu avô paterno (e definitivamente me orgulho disso!), que reconheço a contribuição dos imigrantes ibéricos na colonização de meu estado de nascimento (São Paulo) bem como sua cota de mérito na consolidação do Brasil como a nação que nós conhecemos hoje em dia. Isso sem falar nas contribuições dos espanhóis para a ciência, a cultura, a arquitetura e as artes de uma maneira geral.

Em tempo: tudo que será lido abaixo é apenas a exposição de minha opinião pessoal. Não há, em momento algum, qualquer intenção de se ofender a Espanha como nação, tampouco seus cidadões. Mas trata-se de uma crítica e a crítica, por definição, pode não agradar uns e outros.

Recentemente a imprensa divulgou, em suas diversas mídias, incidentes de brasileiros sendo deportados da Espanha ainda no aeroporto internacional de Barajas*, em Madri, sem qualquer justificativa palpável para tal. Grupos de brasileiros honestos e decentes, alguns universitários em visita ao país para irem a congressos, trancafiados por dias em salas vigiadas por guardas, sem acesso a telefone ou banheiro, aguardando um posicionamento das autoridades locais e sendo vítimas de abusos verbais de toda ordem por parte dos agentes de imigração.

Os abusos verbais divulgados me chamaram bastante a atenção. Os homens eram chamados de "porcos traficantes". As mulheres de "prostitutas". O teor das ofensas revela, além de uma clara válvula de escape para a frustração pessoal desses agentes, um teor de xenofobia incongruente com a índole dos povos latinos de uma maneira geral.

Não vou ser presunçoso (ou ingênuo, dependendo do ponto de vista adotado) ao ponto de alegar que todo brasileiro é de caráter reto e inabalável, e que não existem brasileiros indo a Europa justamente com o objetivo de praticar esses atos ilícitos voiciferados pelos tais agentes da imigração. Isso de fato, infelizmente, acontece.

Só que o buraco é mais embaixo. Eu diria beeemmm mais embaixo.

Primeiro, vamos analizar pela lógica nua e crua: se não houvesse cidadões espanhóis consumidores de drogas e de prostituição, certamente não haveria interesse de criminosos (de qualquer nação) em se inserir e operar no país. É a famosa lei da oferta e da procura. Então, as acusações desses agentes de imigração estão mais para o sujo falando do mal lavado, do que o senso de dever cívico de proteger a sua pátria propriamente dito.

Segundo: os brasileiros foram detidos e extraditados sem acusação formal. Pior: sem quaisquer tipo de prova que justificassem o ato. Para um país cujas leis incluem o julgamento de "crimes contra a humanidade", tanto os políticos como os de guerra, mesmo os não praticados em terras espanholas (vide os louváveis esforços espanhóis em julgar o general Pinochet), os abusos cometidos no aeroporto de Barajas são um incidente vergonhoso, para se dizer o mínimo.

Sabe-se que a Espanha em particular, e a Europa de uma maneira geral, estão atualmente sofrendo um problema sério com a imigração ilegal. Mas daí usar turistas brasileiros como bodes espiatórios da situação extrapola todos os limites do bom-senso. E das boas relações internacionais.

Mas minhas críticas não se restringem somente ao episódio da extradição injustificada de brasileiros. Também quero apontar a emergente arrogância da Espanha no cenário mundial. Se a mesma é fruto ou não do tradicional e milenar orgulho latino, ainda não consegui descobrir.

Mas vamos lá:

Ano passado quando estive na Ilha da Madeira, fiquei sabendo, para meu espanto e desgosto, que a Espanha periódicamente envia navios de guerra para os arredores do arquipélago, pois eles reinvindicam, com base em fatos históricos um tanto que obscuros, que duas ilhas do arquipélado da Madeira, as ilhas Selvagem e Deserta, respectivamente, pertenceriam a Espanha. Portugal, então, é obrigado a mobilizar vasos de guerra para a região para re-atestar sua jurisdição sobre as duas pequenas ilhas com a mesma periodicidade.

Além de ridículo, é um ato que só faz ferir e enfraquecer a relação milenar das duas nações ibéricas, cujas histórias se mesclam no passado ao ponto de não se distinguir uma da outra, dependendo do período histórico considerado. E, estratégicamente falando, é um tiro no próprio pé, pois mesmo que a Espanha eventualmente tomasse as duas pequenas ilhas, tal ato iria ser automáticamente repudiado pela comunidade internacional, incluindo a União Européia (UE) da qual Espanha e Portugal fazem parte. O máximo que iria acontecer seria a ONU, a OTAN, ou a própria UE obrigarem a Espanha a devolverem as ilhas a Portugal.

E eu me pergunto: tudo isso pra quê? Só pode ser para a Espanha exibir suas forças armadas, porque até onde sei ainda existe muita terra nos territórios espanhóis para seus cidadões viverem, além do que as duas pequenas ilhas são inóspitas e só têm valor como reservas naturais e arqueológicas.

Outra coisa que não me entra na cabeça foi a Espanha ter enviado tropas ao Iraque. Logo a Espanha que, como citei acima, uma nação julgadora de crimes contra a humanidade? É um paradoxo.

A pergunta que não quer calar é: será que as forças armadas espanholas são assim tão boas? O que há de tão especial ao ponto de se mandar tropas para baterem ponto no Iraque, ao lado das forças militares mais capacitadas e poderosas do planeta (EUA e Inglaterra)? A presença espanhola no Iraque era assim tão essencial e inprescindível? Falando nisso, qual motivo Espanha teve para se juntar ao conflito?

E agora voltando ao problema no arquipélado da Madeira: será mesmo que a marinha espanhola é assim tão superior a marinha portuguesa?

Sinceramente? Tenho cá as minhas dúvidas.

Afinal, uma nação querer se projetar no cenário mundial, seja mandando forças armadas para confrontos desnecessários ou extraditando turistas vindos da América do Sul, sendo custeada pelo dinheiro da UE, é fácil.

Uma verdadeira provocação de um país que no passado, antes do tempo das vacas gordas da UE, pediu 13 vezes moratória** ao FMI para sua dívida externa.

Nós no Brasil, pelo menos, nunca pedimos.

E quem paga nossas contas, quem financia nossas forças armadas, nossa infraestrutura e, por que não dizer?, nossos aeroportos, somos nós mesmos.

Hasta la vista.

Plei

* um belo e moderno aeroporto. Até metrô conectando seus terminais tem. Tudo financiado com os Euros da UE.

** moratória = ato unilateral de um estado declarando a suspensão do pagamento dos serviços da sua dívida externa.

Saturday, September 15, 2007

A Ilha dos Dragões



Quando meu avô me contava que não existiam praias de areia na Ilha da Madeira, confesso que para mim era muito difícil imaginar. Mas de fato, não há praias arenosas na Ilha, salvo duas que foram artificialmente construidas...

Esquerda: praia de seixos em Funchal. Direita: vista do porto de Funchal

Ha cerca de um mês e meio, estive na Ilha da Madeira, realizando um sonho acalentado por pelo menos duas décadas. Trinta e cinco horas de viagem desde Cape Town, com conexão em Londres. Valeu cada segundo.

A Madeira é um território ultramarinho de Portugal, que denominam "Região Autônoma". Para quem não está familiarizado com a geografia da Macaronésia (o conjunto de ilhas do Atlântico Norte que inclui, além da Madeira e Porto Santo, as Ilhas Canárias e o Arquipélago dos Açores), é difícil imaginar que aquela minúscula ilha ("parece uma cagadinha de mosquito no mapa", nas palavras de meu avô) a oeste da costa da Mauritânia, seja um lugar tão mágico.

A Madeira foi oficialmente descoberta pelo navegador João Gonçalvez Zarco, a serviço da coroa do então rei de Portugal, Infante Don Henrique, o Príncipe Navegador. No entanto, os gregos antigos já sabiam de sua existência. Pitágoras a chamava de "Ilha dos Dragões", embora nenhum réptil mitológico cuspidor de fogo lá existisse, e sim uma árvore chamada "Dragoeiro", que fornecia um corante vermelho-fogo largamente ultilizado na tintura de tecidos no mundo antigo. Mesmo assim, há evidências que povos ainda mais antigos, da idade do bronze, já visitavam a região, embora nunca tenham se assentado por lá.

Mas, muitos séculos depois, os portugueses decidiram lá ficar. Na realidade, a Madeira foi um grande laboratório, onde os europeus pela primeira vez "ensaiaram" o processo de ocupação de territórios fora da Europa que depois viria a ser conhecido como colonização. Mas os portugueses tiveram dificuldade para adentrar a Ilha. Em parte por causa da ausência de praias de areia e áreas abrigadas, em parte por conta da densa floresta que recobria a Ilha (daí o nome "Ilha da Madeira"). A segunda dificuldade eles resolveram de um modo radical aos olhos do mundo atual, mas prático na época: eles atearam fogo na floresta. Pior: o fogaréu se extendeu por sete anos seguidos. Me faz pensar que talvez eles temessem a possível existência de uma população nativa, ou mesmo bestas e monstros habitando a floresta impenetrável.... Pelo jeito a colonização da Ilha foi amplamente financiada pelos Templários, dado que a Cruz de Malta é emblemática, aparecendo no brasão da cidade do Funchal e em muitas igrejas, onde substituem as cruzes tradicionais.

Presença emblemática da Cruz de Malta: na Capela de Santa Catarina e no brasão da cidade do Funchal

Os colonos da Madeira vieram principalmente do sul de Portugal, da região do Algarve. Na ilha os portugueses introduziram os primeiros engenhos de açúcar, as vinhas que viriam a dar origem ao famoso vinho Madeira e bananeiras importadas da China. Todas essas culturas vingaram, pois o solo da ilha, de origem vulcânica, era (e ainda é) extremamente fértil, sustentando a ecomomia por muito tempo. No entanto, com a posterior colonização do Brasil (com um território infinitamente maior, e portanto com muito mais produção) a economia da Ilha viria a sucumbir (principalmente no que se refere a cultura da cana-de-açúcar).

A crise agrícola viria a ser sanada muitos anos depois com o desenvolvimento do turismo. A Madeira foi um dos primeiros destinos turísticos frequentados pelos europeus. Talvez por isso o povo madeirense seja tão amigável, prestativo e acolhedor. A Madeira foi, por muitos anos, a única parada dos navios que faziam a rota entre a Cidade do Cabo e Londres. Isso explica o porquê da imensa colônia madeirense aqui em Cape Town. A atividade turística também alavancou o aparecimento de dois valorosos produtos da Ilha: o famoso vinho Madeira, forte e encorpado, que passou a ser muito apreciado pelos europeus, e o bordado da Madeira, item obrigatório no enxoval das noivas inglesas dos século XIX e meados do século XX.

Pois bem. Nessa ilha tão pitoresca, quase perdida no meio do oceano, surgiu o ramo português da minha família. Os "Pinecos". Não sei muito sobre a origem dos Pinecos na Ilha, mas provavelmente se originaram das famílias de colonos vindos do Algarve. De início os Pinecos tinham o sobrenome "de Freitas", o qual depois foi acrescido de "Silvestre", que na realidade não é sobrenome, e sim uma homenagem que os Madeirenses fazem a São Silvestre quando a criança nasce no 31 de Dezembro. Alguém lá no passado resolveu homenagear um pai ou avô e colocou o Silvestre no registro do nome. E ele ali ficou... Pineco eu sou da parte do meu bisavô. Da parte da minha bisavó, seria da família "do Patrocínio", conhecidos como "Nocas", dos quais pouco sei.

Os Pinecos e outras famílias (os Nocas, os Estrelas, os Bandidos, etc...) habitavam uma espécie de fazenda que se extendia até a beira-mar. Alguns eram donos de terra, outros trabalhavam em regime de arrendamento. A fazenda ficava em uma região costeira conhecida como Lido, por sua vez inserida na zona de Nossa Senhora da Ajuda que por sua vez faz parte da Freguesia de São Martinho. No Lido a maioria era Pineco, e quando não eram Pineco, eram compadres e comadres. Os casamentos se davam ali mesmo entre os conhecidos da comunidade... Abaixo, uma foto minha junto ao Ilhéu do Gorgulho, marco importante para os Pinecos (para um Pineco ser considerado apto a ir para mar, ele tinha que nadar do ilhéu até a costa em tenra idade):

Ilhéu do Gorgulho. Lugar ancestral...

Por muito tempo pensávamos, minha mãe e eu, que já não tínhamos mais parentes vivendo na Ilha. Pelo que sabíamos, todos tinham deixado a Madeira. Porém, coisa do destino, acabei por descobrir que temos sim parentes vivendo lá. Primos em primeiro e segundo graus da minha mãe. A estória desse achado é longa, por isso vou resumir aqui: encontrei em uma comunidade do Orkut relacionada a Ilha da Madeira um tópico aberto por uma moça, a Márcia, perguntando se alguém ali era "de Freitas Silvestre". Eu entrei em contato com ela, dizendo que era da família dos Pinecos e tals. Bingo. Ela depois me passou o contato da tia dela, a quem procurei. No final das contas, descobri que somos parentes, até fotos da visita o meu avô a Ilha eu vi. Abaixo minha foto com a minha prima Pineca, a Luisa:

Eu e a Luisa...

Na realidade, um dos pontos altos da minha passagem pela Ilha foi o encontro com a Luisa e sua família, e tudo o que se desenrolou depois: a descoberta dos laços familiares, a visita ao antigo lar dos Pinecos onde tive o privilégio de conhecer a casa onde meu avô nasceu (veja abaixo), a espetada madeirense em um lugar que não é para turistas, o passeio até o extremo leste da Ilha e Porto Muniz... E além da Luisa, do Luis (marido) e da Cristina (filhinha), descobri qe há mais pelo menos três outros Pinecos na Ilha, uma outra prima no Brasil (Gorete, irmã da Luisa, mãe da Márcia) e um primo em Londres (o Zé Manuel, irmão da Luisa e da Gorete). Depois desse re-encontro, acho difícil dizer que não existe destino.

A casa dos Pinecos. A esquerda, a casa onde meu avô nasceus (seta). A direita, sou eu na entrada da casa. Momento raro, pois a casa será demolida em breve para dar lugar a mais um hotel...

Uma coisa que me impressionou na Madeira foi constatar que a Ilha é intensivamente cultivada. Cada espaço de terra é plantado, mesmo no Funchal. Eles plantam em terraços, localmente chamados de "poios", e o clima permite uma diversidade de culturas que só se encontra aqui: próximo ao mar temos as bananeiras e a cana-de-açúrcar, subindo as montanhas começam os vinhedos. E tudo isso feito no braço: a ilha é muito escarpada para permitir o uso de tratores, por exemplo. A irrigação é feita por canais construídos artificialmente que levam a água das nascentes nas montanhas para os poios, daí chamados de "levadas". Abaixo, uma visão dos poios:

Os terraços da Madeira

O grosso da produção agrícola é vendido a Portugal, mas tem muita coisa comercializada localmente, como podemos constatar em uma visita ao mercado dos lavradores no Funchal:

Mercado dos Lavradores. Notem a variedade de produtos

A culinária da Ilha é espetacular e tem sido uma das minhas melhores recordações. Como era de se esperar em uma ilha no meio do mar, e um território lusitano por excelência, a comida típica da madeira são os frutos do mar. Tive a oportunidade de provar pratos que desde sempre povoaram a minha imaginação, como as famosas lapas grelhadas, o atum com milho frito, a espada-preta (foto abaixo) com bananas e, como não poderia deixar de ser, o polvo de ceboladas! Todos os pratos muito bem preparados e de um sabor espetacular... Tenho que confessar uma coisa: a caldeirada que comi na Madeira é a única até agora que superou a caldeirada preparada pela minha mãe (e olha que isso não é pouca coisa...).

Esquerda: Espada-preta (Aphanopus carbo). Direita: o cefalópode Rodrigo plei predando sobre filé de A. carbo com bananas na Madeira. Notem o auxílio luxuoso de um bom vinho branco português...

De quebra fui com a Luisa e o Luis em um restaurante fora da rota turística onde pude apreciar a famosa espetada madeirense, tão popular aqui na Cidade do Cabo mas incomensurávelmente melhor na Ilha, como não podia deixar de ser. Abaixo eu com meus primos no restaurante da espetada:

Eu, Luis e Luisa, na Espetada Madeirense. Só diretoria...

Um passeio imperdível na Madeira são as Grutas de São Vicente, que na realidade, são cavernas. Mas o que essas cavernas têm de tão especial que merecem ser citadas aqui? Bem, são cavernas únicas, pois não são de origem sedimentar e sim vulcânica: foram escavadas pela ação da lava líquida que corria nas entranhas da Ilha quando ainda vulcanicamente ativa, ha alguns poucos milhões de anos. É um dos poucos lugares do mundo onde se pode ver esse tipo de formação geológica.

Galeria da gruta de S. Vicente.

Os portugueses são muito religiosos, católicos fervorosos e constatei isso em todo lugar: há uma igreja praticamente em cada esquina, e imagens de santos, principalmente São José e Nossa Senhora de Fátima são figuras quase que onipresentes nas fachadas das casas:

Santos de azulejos

Cheguei a Ilha em uma época de festas, era época de comemoração de Nossa Senhora do Monte, padroeira da Ilha. A população em peso subiu o monte para agradecer a padroeira, muitos portando os círios (aquelas velas imensas) como pagamento a alguma graça alcançada. A igreja também estava toda decorada com flores de plástico multicoloridas, compondo uma paisagem bem tradicional. Um evento a parte é a festa que ocorre na vizinhança da igreja, uma espécie de quemesse onde as famílias vão, compram carne ali mesmo, espetam em paus de louro fornecidos pelos próprios açougueiros e assam em churrasqeiras comunitárias. Refrescos, a famosa poncha madeirense, e o delicioso bolo-do-caco tabém estão disponívies para a compra.

Igreja de Nossa Senhora do Monte enfeitada para a festa da padroeira. Notem os fiéis carregando os círios.

Outro ponto pitoresco que denota a fé do Madeirense é a Igreja da Nossa Senhora da Paz. Fica bem no alto do monte, quase inacessível. O primo Luis me levou lá e me contou a história do lugar, fascinante: na segunda guerra, submarinos alemães torpedearam Funchal e afundaram alguns navios. Os pescadores se reuniram e pediram a Nossa Senhora que intercedesse pela ilha e acabasse com os ataques. Fato foi que no dia seguinte os alemães se foram. Para pagar a promessa, os pescadores fizeram um rosário gigante com as correntes dos barcos naufragados e pedras do porto de Funchal, levaram o rosário nas costas até o ponto mais alto do monte e lá construiram a Igreja, que ficou conhecida como Igreja de Nossa Senhora da Paz por causa desse evento.

Nossa Senhora da Paz e seu rosário gigante

Por último, não poderia deixar de citar as famosas casinhas da Madeira, minúsculas construções em forma de cabana onde - pasmem, realmente vivem pessoas - e que encantam os turistas. São mais comuns na região de Santana, na costa norte da Ilha, mas mesmo em Funchal se encontra esse tipo de contrução.

Casinhas em Santana

E essa foi a minha primeira viagem a Madeira. Muitas outras ainda farei...

Que Nossa Senhora do Monte (padroeira da Ilha da Madeira) e Nossa Senhora da Ajuda (protetora dos Pinecos) nos abençoe a todos.

Plei


Saturday, March 17, 2007

São Paulo e sua Música



Clipe da cidade de São Paulo, ao som de Sinfonia Paulistana


Eu sou paulistano do Bixiga.

Devo ter vivido naquele bairro por um ou dois dias, que foi o tempo que minha mãe ficou no hospital. Mas mesmo assim, eu nasci lá, na maternidade do agora (infelizmente) extinto Hospital Matarazzo (... da força da grana que ergue e destrói coisas belas; já profetizava Caetano). Ficava em uma travessa da Avenida Paulista.

Vivi em São Paulo por breves onze anos da minha vida. Depois veio São Bernardo, Americana, Rio Grande, Balneário Camboriú, Florianópolis, Curitiba e agora, fora do Brasil, Cidade do Cabo.

Apesar de toda essa migração, e desses 20 anos de separação da terra natal, eu sou e continuo me sentindo muito paulistano. Até um pouco do sotaque e das gírias eu uso até hoje: semáforo é farol, atendo o telefone (em português, claro) dizendo "aloah" e uma série de outras coisas que me fogem a mente no momento. Além disso, o passo sempre apressado e a mania de trabalhar (sabem como é, na prece do paulista, trabalho é o Padre-Nosso...) denunciam minhas origens.

Vejo São Paulo com a cidade mais acolhedora do planeta, mas vou escrever sobre isso em outra oportunidade. Esse ensaio é sobre a músicalidade da terra dos bandeirantes, que me enchem de alegria e saudades. Mas, brevemente, devo dizer que pela miscelânea cultural de tantos povos e etnias, São Paulo é deveras singular.

E toda essa singularidade paulistana se reflete na sua música e seus compositores. A música de São Paulo, brasileiríssima por excelência, é muito pitoresca no sentido de que em suas mais profundas e tradicionais raízes, mescla o samba canção com o sotaque italiano, criando canções de sonoridade única. Claro, há também várias outras linhas músicais bem características, como o Rock'n'Roll d'Os Mutantes e do Ira!, as canções escrachadas e as performances teatrais do Língua de Trapo e do Premeditando o Breque, os sambas com sotaque da Móoca da saudosa Miriam Batucada, o pioneirismo do movimento punk no Brasil por Kid Vinil e o grupo Magazine, além de vários outros que me escapam à memória no momento. Mas o samba canção paulistano é o mais típico, na minha modesta opinião. Lembrem-se: eu não sou músico, e não conheço muita coisa de música (meu negócio é lula); sou só um humilde apreciador. Aos gabaritados que por ventura lerem essas linhas, solicito compreenção ante a minha limitação no tema.

Talvez a mais conhecida delas, que nem criada por um paulistano foi, revela nos arranjos e na melodia toda essa panacéia paulistana. Falo de Sampa, composta e gravada por Caetano Veloso em homenagem à paulicéia desvariada. A música fala das impressões de um baiano vivendo na terra da garoa; como é muito conhecida, vou me abster de postar a letra. Mãããããããsssss... deixo clipe abaixo, para quem quiser ouvir a música online:



Outro nordestino que foi seduzido pela cidade de São Paulo (tanto que nunca mais foi embora) é o gênio musical Tom Zé. Embora a obra de Tom Zé seja até certo ponto menos conhecida do que a de seu conterrâneo, o garoto de Irará é tão (ou algumas vezes, até mais) genial do que o menino de Santo Amaro da Purificação. Em homenagem à terra que o adotou e acolheu, Tom Zé nos honra com a algumas canções que tem São Paulo como tema, das quais deixo a seguir letras de duas delas:

SÃO SÃO PAULO

São São Paulo, quanta dor
São Sâo Paulo, meu amor

São vinte milhões de habitantes
de todo canto e nação
que se agridem cortesmente
correndo a todo vapor
e amando com todo ódio
se odeiam com todo amor
são vinte milhões de habitantes aglomerada solidão
por mil chaminés e carros
gaseados a prestação.

Porém com todo defeito
te carrego no meu peito.

São São Paulo, quanta dor
São São Paulo, meu amor

Salvai-nos, por caridade!
Pecadoras invadiram
todo o centro da cidade
armadas de ruge e batom
dando vivas ao bom humor
num atentado contra pudor.

A família protegida
o palavrão reprimido
um pregador que condena
[um festival por quinzena]

Porém com todo defeito
te carrego no meu peito.

São São Paulo, quanta dor
São São Paulo, meu amor

Santo Antonio foi demitido
e os ministros de Cupido
armados da eletrônica
casam pela tevê
crescem flores de concreto
céu aberto ninguém vê.

Em Brasília é veraneio
no Rio é banho de mar
o país todo de férias
e aqui é só trabalhar.

Porém com todo defeito
te carrego no meu peito.

AUGUSTA, ANGÉLICA E CONSOLAÇÃO*

Augusta, graças a Deus,
graças a Deus,
entre você e a Angélica
eu encontrei a Consolação
que veio olhar por mim
e me deu a mão.

Augusta, que saudade,
você era vaidosa,
que saudade, e gastava o meu dinheiro,
que saudade, com roupas importadas e outras bobagens.

Angélica, que maldade,
você sempre me deu bolo,
que maldade, e até andava com a roupa,
que maldade, cheirando a consultório médico,

Angélica. Quando eu vique o Largo dos Aflitos
não era bastante largo
pra caber minha aflição,
eu fui morar na Estação da Luz,
porque estava tudo escuro
dentro do meu coração

*são ruas famosas da cidade, na região da Paulista (N. do P.)

A mais recente homenagem do Tom Zé a São Paulo tem a música "Tem das Onze", de Adoniran Barbosa, como base. Essa eu consegui o clipe:



Ao leitor interessando na paulistanidade da música do Tom Zé, eu recomendo uma visita à web-page do músico, onde você poderá conhecer outras preciosidades como "A briga do Edifício Itália e do Hilton Hotel", "Interlagos F1" e muito mais.

Mas além de encantar e inspirar compositores baianos, até cariocas da gema já declaram em prosa e verso seu amor por São Paulo. Quer dizer, em música. Em 1992, o maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, vulgo Tom Jobim, um dos pais da Bossa Nova, compôs e gravou uma música em homenagem a São Paulo. Parece que ele não compartilhava da impressão injusta e jocosa de Vinicius de Moraes que chegara a declarar que a cidade era (sic) o túmulo do samba. Devaneio de gênio confuso, me arrisco a dizer. E vejam, ironia das ironias, Vinicius tinha em um paulistano (Toquinho), um dos seus melhores amigos e parceios musicais. Mas deixemos os devaneios do poetinha de lado e apreciemos letra da canção do Tom:

TE AMO SÃO PAULO

São Paulo, te amo
Te amo, São Paulo
Na tarde tão fria
Busquei teu calor,
teu amor em São Paulo
São Paulo, te amo
Pasión de mi vida
I love you, querida
Je t'aime São Paulo
Io ti amo São Paulo
I love you
Te amo, São Paulo
Te amo
Te adoro, te adoro
São Paulo, São Paulo,
São Paulo
Laiala laia la
Sonhei com você
em São Paulo

Como não poderia deixar de ser, o Rei Roberto Carlos, capixaba do município de Cachoeiro do Itapemirim, e gravou sua homenagem à terra da garoa, uma música do grupo paulistano Premeditando o Breque, cujos arranjos são um claro plágio de New York, New York, do velho blue eyes, mas que faz juz a grandiosidade da nossa Big Apple tupiniquim:

SÃO PAULO, SÃO PAULO

É sempre lindo andar na cidade de São Paulo
O clima engana, a vida é grana em São Paulo
A japonesa loura, a nordestina moura de São Paulo
Gatinhas punks, um jeito yankee de São Paulo

Na grande cidade me realizar
Morando num BNH.
Na periferia a fábrica escurece o dia.

Não vá se incomodar com a fauna urbana de São Paulo
Pardais, baratas, ratos na Rota de São Paulo
E pra você criança muita diversão e poluição
Tomar um banho no Tietê ou ver TV.

Na grande cidade me realizar
Morando num BNH
Na periferia a fábrica escurece o dia.

Chora Menino, Freguesia do Ó, Carandiru, Mandaqui, ali
Vila Sônia, Vila Ema, Vila Alpina, Vila Carrão, Morumbi
Pari, Butantã, Utinga, Embu e Imirim, Brás, Brás, Belém
Bom Retiro, Barra Funda, Ermelino Matarazzo
Mooca, Penha, Lapa, Sé, Jabaquara, Pirituba, Tucuruvi, Tatuapé

Pra quebrar a rotina num fim de semana em São Paulo
Lavar um carro comendo um churro é bom pra burro
Um ponto de partida pra subir na vida em São Paulo
Terraço Itália, Jaraguá, Viaduto do Chá.

Na grande cidade me realizar morando num BNH
Na periferia a fábrica escurece o dia
Na periferia a fábrica escurece o dia

Honras a cidade de São Paulo vieram (pasmem!) até dos pampas gaúchos. A banda portoalegrense Engenheiros do Hawaii também prestou sua homenagem:

SAMPA NO WALKMAN

Este sou eu
Parado na esquina
A mesma esquina em outra canção
(o barulho termina, começa a canção)

É a verdade
A-ver-a-cidade
Alguma coisa acontece no meu coração

Estas são elas
Tuas meninas
(nordestinas, erundinas)
tua mais completa contradição

Esta São Paulo
São tantas cidades
Nunca tantas quantas gostaria de ser

Ouvindo Sampa no walkman
(vidro, concreto e metal)
Ouvindo Sampa no walkman
Duvido de qualquer cartão postal

Este sou eu
Parado na esquina
A-ver-a-cidade, ouvindo a canção

Deuses da chuva
Demônios da garoa
Garotas propaganda além dos outdoors

FIESP, favelas
Ouro & ferro velho
Surfista ferroviário
(o contrário do contrário do contrário do...)

Esta São Paulo
São tantas cidades
Nessas cidades eu vejo a canção

Ouvindo Sampa no walkman
Samples de sons audiovisuais
Ouvindo Sampa no walkman
A ponte aérea, no metrô

Ouvindo Sampa no walkman (vidro, concreto & metal)
Ouvindo Sampa no walkman Duvido de qualquer cartão postal
Ouvindo Sampa no walkman Samples de sons audiovisuais
Ouvindo Sampa no walkman na Ponte aérea, no metrô
Ouvindo Sampa no walkman a walk on the wild side

Este sou eu
Na esquina, de novo
Tudo é tão novo quanto esta canção
?Será que alguém presta atenção?

De Belém do Pará, veio uma grande homenagem, quase um estudo sobre São Paulo, sua históia e seu cotidiano. Do mestre Billy Branco, Sinfonia Paulistana, cujo clipe encabeça esse texto, traduz a força de vontade e a disposição do paulistano. Lembro de pequeno, antes de ir para a escola, no café da manhã, comendo pão com napum* e café preto, minha mãe ligava o velho rádio a transistor na antiga rádio Jovem Pan, e vinheta do programa matutino daquele horário era um trecho dessa música e era como uma chamada ao paulista para o trabalho. "Vão bora, vão bora/Olha hora, vão bora, vão bora...". Eis a letra (comprida pacas):

*napum: requeijão cremoso, na língua do Plei (N. do P.).

SINFONIA PAULISTANA

Fazendo som com as estrelas, ligado no sideral
Por Maria, fez poemas, nas praias do litoral
As ondas contaram ao mar, por isso é que os oceanos
No mundo inteiro cantados, cantarão mais cem mil anos
E o homem entre mar e céu, tem canções por todo lado
Louvado seja Anchieta, pra sempre seja louvado
Navegante tem cantiga, que aprendeu no mar um dia
Qualquer rota que ele siga, se não canta, ele assobia
Cabelos cor da noite, pele de alvorada
Cacique entregou ao branco, a filha amada
Raízes de Brasil, chegaram até aqui
Abençoado o colo dessa mãe antiga
Por 400 anos feitos de cantiga, naquele doce embalo
Da canção Tupi
Na tez de uma paulista em cheiro de floresta
A cor de jambo é a índia, que ninguém contesta
De uma altivez que o Império nunca vira
É a tradição, é a raça, é a nossa origem
As coisas da história de São Paulo exigem
A honra que se faça ao nome de Bartira, Bartira
Era tudo, era o nada rio acima
Que o paulista no peito ia vencer
Pra fazer mais Brasil do que existia
Já um tempo era pouco pra perder
Reunindo oração e despedida na partida da horda triunfal
Caçador da esmeralda perseguida
Foi fazendo a unidade nacional
Bandeiras, monções
Já se dava por glória ao que se ia
Porque mal se sabia se voltava
E a benção levada já servia
De unção para quem por lá ficava
Nas monções quem seguia, na verdade
Já partia cheirando à santidade
Quem não via esmeralda ou não morria
Povoava cidade mais cidade
Bandeiras, monções, São Paulo
Que amanheceu trabalhando
São Paulo, que não sabe adormecer
Porque durante a noite, paulista vai pensando
Nas coisas que de dia vai fazer
São Paulo, todo frio quando amanhece
Correndo no seu tanto o que fazer
Na reza do paulista, trabalho é Padre-Nosso
É a prece de quem luta e quer vencer
Bastante italiano, sírio e japonês
Além do africano, índio e português
Tudo isso ao alho e óleo, temperando a raça
Na capital do tempo, tempo é ouro e hora
Quem vive de espera, é juros de mora
Não tem mais-mais nem menos, ou é sim ou não
No máximo se espera pela condução
Nas retas da Rio-São Paulo, chegando, chegando eu vim
Paulista é quem vem e fica plantando, família e chão
Fazendo a terra mais rica, dinheiro e calo na mão
Dinheiro, mola do mundo, que põe a gente na tona
Leva a gente ao fundo
Sim, senhor, sim, senhor, sim, senhor
Faz a paz e a guerra, traz a Lua pra Terra
No mais aumenta a barriga do comendador
Dinheiro, juras e juros, erguendo todos os muros
Pra ele próprio depois, derrubar, derrubar
É a voz que fala mais forte, razão de vida e de morte
Também só compra o que pode comprar
São Paulo, que amanhece trabalhando
Casais entram no elevador
O fino pra curtir um som: ran ran, ren ren, ron ron
A noite é sempre uma criança, é só não deixar crescer
Assim existe esperança, no amanhecer
São coisas da noite, anúncios conhecidos
Que enfeitam a cidade, em movimentos coloridos
Alguém vem do trabalho, do baralho ou do que for
Do La Licorne ao Ceasa, de alguma coisa do amor
Tem sempre mais um, que vem pela calçada
Na bruma que esconde quem sobrou na madrugada
Dei tempo ao tempo, o tempo é que não dá
Tenho que estar pelas sete, no Viaduto do Chá
Olha o Sol, olha o Sol, cadê o Sol? Onde o Sol?
Sumiu, sumiu, sumiu
Quando amanhece, o Sol comparece por obrigação
Nublado, cansado, um Sol de rotina
Se bem ilumina, nem dão atenção
É que o bandeirante não perde o seu tempo
Olhando pro alto, o Sol verdadeiro está no asfalto
Na terra, no homem e na produção
A cor diferente do céu de São Paulo não é da garoa
É véu de fumaça, que passa, que voa
Na guerra paulista das mil chaminés
São Paulo, que amanhece trabalhando
Começou um novo dia, já volta
Quem ia, o tempo é de chegar
Do metrô chego primeiro, se tempo é dinheiro
Melhor, vou faturar
Sempre ligeiro na rua, como quem sabe o que quer
Vai o paulista na sua, para o que der e vier
A cidade não desperta, apenas acerta a sua posição
Porque tudo se repete, são sete
E às sete explode em multidão:
Portas de aço levantam, todos parecem correr
Não correm de, correm para
Para São Paulo crescer
Vão bora, vão bora, olha a hora
Vão bora, vão bora, vão bora, vão bora
Olha a hora, vão bora, vão bora, vão bora
Que o tempo não espera, a vida é derradeira
Quem é vai ser, já era de qualquer maneira
O mundo é do "eu quero"
Quem me der é triste, tristeza basta a guerra
E o adeus no amor
Você onde é que estava quando o tempo andou?
Na terra que não pára, só você parou
Vão bora, vão bora, olha a hora
Vão bora, vão bora, vão bora, vão bora
Olha a hora, vão bora, vão bora, vão bora
O que vale é a versão, pouco interessa o fato
Porque a sensação maior é a do boato
Em coisa de um segundo, noite é madrugada
Notícia ganha o mundo, e a gente não é nada
Você onde é que estava quando o tempo andou?
São Paulo nunca pára, mas você, parou
Vão bora, vão bora, olha a hora
Vão bora, vão bora, vão bora, vão bora
Olha a hora, vão bora, vão bora, vão bora
São Paulo que amanhece trabalhando
Na Praça do Patriarca, rua Direita, São Bento
Na Líbero Badaró, no Viaduto do Chá
Lá está aquele moço, que não dá ponto sem nó
Na conversa bem jogada, vai vendendo geladeira
Pra esquimó curtir verão
Papo firme é isso aí, desse dono da calçada
Rei da comunicação
Olhe aqui, dona Teresa, o produto de beleza
Que chegou da Argentina, examina, examina
De brinde pra seu marido
Nova pomada pra calo que resolve a dor de ouvido
Tem Parker 73, compre uma e ganhe três
Nem paga o justo valor, mais outra ali pro doutor
Leve a lei do inquilinato, mesmo não sendo inquilino
Morar na lei é um barato, e ele prova à sua maneira
Que um ataque de besteira, faz de um doutor um otário
Cursando numa avenida o vestibular da vida
Para ser bom empresário
Ser do São Paulo, do Corinthians e Palmeiras
É ter o fino em futebol durante o ano
Em tênis, remo, natação, nas domingueiras
Bom é Pinheiros, Tietê ou Paulistano
Com Ademir, com Rivelino no gramado
Com rei Pelé e suas jogadas de veludo
Não pe de graça que São Paulo é chamado
Melhor da América Latina em quase tudo
Pró-esporte, pró-esporte é a solução
Pró-esporte, pró-esporte contra a poluição
Lá por setembro o estudante nos ensina
Aquele esporte pelo esporte que não cede
E o meu Mackenzie, dá um show com a medicina
Na grande guerra que se chama MacMed
No corre-corre mundial estamos nessa
Os Fittipaldi estão aí para dizer
Só em São Paulo que é a terra do depressa
A São Silvestre poderia acontecer
Pró-esporte, pró-esporte é a solução
Pró-esporte, pró-esporte contra a poluição
São Paulo jovem, dos que promovem velocidade
Nos seus cavalos, de roda e ferro, na sua forma de liberdade
O peito agarra, a costa de aço
Que deu garupa na Yamaha, no upa-upa
Feito de abraço e muito amor
São Paulo jovem, na mesma cela
Vão ele e ela, por onde seja
Deus os proteja, pelos caminhos da vida em flor
Tem coisas da Ipiranga, da Itapetininga, até da São João
Às vezes também dá
Puxar o show, o chope, o uísque, boa pinga
E o molho das mulheres que transam por lá
Tem loja, tem butique, tem pizzaria
Boate, restaurante, até casa lotérica
É rua que de nada mais precisaria
Com todo aquele charme do Jardim América
América, rua augusta
E agora, já é hora
E ninguém vai embora, embora de lá
Rua augusta, e agora, já é hora
E ninguém vai embora, embora de lá
Bartira e João Ramalho nunca imaginaram
Que a tanga e a miçanga vinham outra vez
Agora nos diriam vendo que acertaram:
Valeu o nosso amor, pelo amor de vocês
E a moça vai passando, e ninguém vê mais nada
Quando ela vai na dela, é pra machucar
É a paulistana boa, despreocupada
De short ou minissaia, pondo pra quebrar, pra quebrar
Rua augusta, e agora, já é hora
E ninguém vai embora, embora de lá
Na sinfonia, que é de todos os barulhos
De Santo Amaro, ao Brás, ao Centro, ao ABC
Por Santo André, Vila Maria até Guarulhos
Grande São Paulo, como eu gosto de você
São Paulo, que amanhece trabalhando
São Paulo que não pode amanhecer
Porque durante a noite, paulista vai pensando
Nas coisas que de dia vai fazer.

Mas além das homenagens rendidas por diversos brasileiros à São Paulo, os campos de Piratininga sempre foram férteis em musicalidade, e geraram safras e safras de nativos que fazem a boa música. Todos são incomensurávelmente importantes no cenário musical, mas tem um especialmente singular, tipo de coisa que só São Paulo pode gerar: um cientista que é artista. Paulo Emílio Vanzolini. Herpetólogo (= zoólogo especialista em peixes, anfíbios e répteis) e boêmio da noite paulistana, professor da USP que por muitos e muitos anos trabalhou (e ainda trabalha) no Museu de Zoologia, anexo ao Museu Imperial do Ipiranga. Também foi um dos idealizadores da FAPESP (Fundação de amparo à pesquisa do Estado de São Paulo). Na realidade, ele não é músico, mas compositor, e produziu uma pérola que é um dos simbolos do cancioneiro paulistano: Ronda, que foi gravada muitas vezes, mas ficou imortalizada na voz da baiana Maria Bethânia. A música, ao melhor estilo dos trovadores medievais, conta a história da desilusão de uma mulher, com desfecho trágico na noite paulistana:

RONDA

De noite eu rondo a cidade
A te procurar sem encontrar
No meio de olhares espio em todos os bares
Você não está
Volto pra casa abatida
Desencantada da vida
O sonho alegria me dá
Nele você não está
Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
Desiste, esta busca é inútil
Eu não desistia
Porém, com perfeita paciência
Volto a te buscar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando um dadinho
Jogando bilhar
E neste dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da avenida São João

Nessa linha samba-canção, o compositor paulistano Eduardo Gudin, fez uma linda canção chamada Paulista, que faz uma alusão a avenida mais famosa da cidade, e que foi imortalizada pela voz divina da musa Vânia Bastos (vejam também o clipe):

PAULISTA

Na Paulista
Os faróis já vão abrir
E um milhão de estrelas
Prontas pra invadir
Os jardins
Onde a gente aqueceu
Numa paixão
Manhãs frias de abril

Se a avenida
Exilou seus casarões
Quem reconstruiria
Nossas ilusões?
Me lembrei
De contar pra você
Nessa canção
Que o amor conseguiu

Você sabe quantas noites
Eu te procurei
Nessas ruas onde andei?
Conta onde passeia hoje
Esse seu olhar
Quantas fronteiras
Ele já cruzou
No mundo inteiro
De uma só cidade

Se os seus sonhos
Emigraram sem deixar
Nem pedra sobre pedra
Pra poder lembrar
Dou razão
É difícil hospedar
No coração
Sentimentos assim



Outra célebre mas pouco lembrada personalidade a música paulistana foi Miriam Batucada. Nascida Miriam Ângela Lavecchia, a moça do bairro da Móoca (o mesmo de meu pai), uma típica descendente de italianos, entrou para o cenário musical através do samba, que cadenciava batucando com as próprias mãos. A batucada ela aprendeu com uma colega em um salão de cabelereiros quando adolescente, a a obcessão dela com a percussão era tal que chegou a ser demitida do emprego de digitadora na Arno porque ficava batucando no teclado... Vinte anos de carreira, infelizmente poucos discos gravados (um deles em parceria com Raul Seixas), faleceu cedo, mas deixou esta bela canção que fora composta especialmente para ela:

O QUE VIER EU TRACO/TECO-TECO

Eu, quando canto meu sambinha batucada
A turma fica abismada com a bossa que eu faço
Mas eu não me embaraço porque não há tempo
Marco meu contratempo dentro do compasso
Quem não tiver o ritmo na alma
Nem cantando com mais calma faz o que eu faço
Samba canção, samba de black, batucada
Isto, pra mim, não é nada, o que vier, eu traço

Teco, teco, teco, teco, teco na bola de gude era o meu viver
Quando crianca, no meio da garotada, com a sacola do lado
Eu só jogava pra valer
Não fazia roupa de boneca nem fazia comidinha
Com as garotas do meu bairro, que era natural
Subia em poste, soltava papagaio e até meus 14 anos era esse meu mal

Com a mania de garota folgazã
Em toda parte que eu chegava, encontrava um fã
Quando havia festa na capela do lugar
Era a primeira a ser chamada para ir cantar
E assim vivendo, vi meu nome ser falado, em todo canto, em todo lado
Até por quem nunca me viu
E, hoje, a minha grande alegria é cantar com cortesia para o povo do Brasil

Ela também tinha adaptado a letra de Garota de Ipanema para a gíria paulistana. Ficou assim:

Ôrra que mina bacana
Que lomba, meu chapa!
Vou convidar ela, pra ir até a Lapa
Comer macarrão com fruto do mar...

Para os que nunca ouviram hablar de Miriam Batucada, eu consegui esse vídeo no YouTube:




Mas talvez o artista que mais sintetiza o que é ser paulistano, descrevendo a vida do cidadão trabalhador e comum da grande metrópole seja o saudoso Adoniran Barbosa. Típico paulista decendente de italianos, nasceu em 06 de agosto de 1910, na cidade de Valinhos, interior de São Paulo. João Rubinato (seu nome de batismo) mudou-se para a capital ainda jovem, e acabou crescendo nos bairros mais típicos da cidade (Bixiga, Lapa, Penha, Móoca, Tatuapé, etc), convivendo com a miscelânea de imigrantes que abundavam na cidade na época, incorporou toda essa rica cultura misigenada e tornou-se o mais paulistano dos paulistanos. Cantou a luta e labuta do cidadão comum na cidade que nunca pára; transformou em samba essa mania brasileira de rir da própria desgraça e de ter fé na vida. Enfim, cantou a alegria do povo. Pai de sucessos como Trem das Onze (eleita a música da cidade de São Paulo), Samba do Arnesto, Saudosa Maloca, Inês, Torresmo a Milanesa, Ponte da Casa Verde, Samba Italiano, Iracema e tantos outros... Adoniran é reverencado até pelos sambistas do Rio de Janeiro, tendo sido inclusive procurado pelo mais ácido crítico do samba paulistano (Vinícius de Moraes, que havia citado) para musicar a letra de "Bom dia, tristeza". Adoniran teve suas músicas gravadas por vários artistas da nossa música, como Gal Costa, Ivete Sangalo (Trem das Onze), Elis Regina e Clara Nunes (Iracema), Martinho da Vila (Inês) e muitos outros. Abaixo segue um clipe de Adoniran cantando com a pimentinha no tradicionalíssimo Bar da Carmela, no Bixiga:



Você, leitor vitorioso que teve a paciência de ler esse texto até o fim, deve estar se perguntando como alguém pode ter um gosto musical tão eclético quanto esse tal de Rodrigo Plei, que foi capaz de passar do samba-canção ao punk-rock como se tudo estivesse em um continuum musical?

Eu mesmo não sei.

Talvez porque eu seja o avesso do avesso do avesso do avesso, como dizia a minha avó, fazendo alusão ao meu gênio confuso com a música de Caetano Veloso à minha cidade.

Porque sou o avesso do avesso do avesso do avesso, como a cidade de São Paulo.

Salamaleikum, bênção, axé, shalom, namastê.

Plei

PS: Os nomes de artistas ou bandas que aparecem sem link no texto estão devidamente linkados no começo do mesmo (N. do P.).

PS2: N. do P. = Nota do Plei

Sunday, March 11, 2007

Os tipos de céticos


Como cientista, eu sou um cético por excelência.

Como pessoa comum, também.

Mas o que é o cetismo? O que é uma atitude cética? Muitas pessoas confundem esse conceito e acabam por deturpá-lo. Às vezes por ingenuidade, às vezes (infelizmente!) por pura maldade mesmo.

Cetismo vem do grego skeptomai, que poderia ser traduzido como investigar, considerar, ponderar e outros sinônimos do gênero. Grosso modo, o cetismo é uma atitude de questionamento frente a um fato, filosofia, idéia, etc.

Na prática, o cetismo se divide em duas vertentes: o cetismo científico, que é uma postura científica e prática, em que alguém questiona a veracidade de uma alegação, e procura prová-la ou desprová-la usando o método científico; e o cetismo filosófico, uma postura filosófica em que pessoas escolhem examinar de forma crítica se o conhecimento e percepção que possuem são realmente verdadeiros, e se alguém pode ou não dizer se possui o conhecimento absolutamente verdadeiro (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A9tico). Eu me encaixo nas duas definições, mas por conta da minha profissão, sou muito mais inclinado à primeira categoria do que a última (Humm, redundante isso, mas vá lá...).

A antítese do cetismo é o dogmatismo que, novamente grosso modo, é uma visão de mundo que pretende ter explicações absolutas e inquestionáveis para tudo; é, pois, baseada no dogma que, no campo filosófico, é uma crença/doutrina imposta, que não admite contestação (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dogmas).

No cetismo, portanto, a dúvida é o preceito mais importante, ao passo que no dogmatismo, é a certeza (independente se verdadeira ou não) que norteia essa visão visão filosófica. Enquanto a primeira é a mais comum entre cientistas e pessoas mais, digamos, racionais, a última é a visão predominamte entre os fundamentalistas religiosos.

Ocorre que muitas vezes pessoas confundem ambos conceitos escorados na própria vaidade; aí o negócio desgringrola de vez. Há céticos e "céticos". Os que estão entre aspas acham muito bonitinho desqualificar todos os que não pensam como eles, ridicularizando crenças, supertições, e conceitos "alternativos" baseados em uma suposta "superioridade" (???) intelectual. Ao passo que os dogmatistas se deliciam ao taxar perjorativamente todos céticos de "impuros", "incapazes de ver a verdade", "satanistas" e outros adjetivos tão carinhosos quanto, desta vez baseados em um suposta "superioridade" (???) espiritual. Entre esses dois extremos encontramos os verdadeiros céticos (aqueles sem aspas) e os dogmatistas moderados.

Mas hoje aqui quero falar dos céticos com aspas, que doravante vou chamar simplesmente de céticuzinhos. Sobre os fundamentalistas, vou discorrer em outra oportunidade.

Você leitor agora deve ter notado uma certa dose de veneno no modo como eu grifei esse pequeno neologismo, tornando-o, agora, perjorativo.

Mas essa é exatamente a intenção.

Desde que me filiei ao site de relacionamentos Orkut, notei que a existência de céticuzinhos é especialmente relevante no mundo virtual. No mundo real eles são beeemmm mais escassos, haja vista que em 31 primaveras de existência eu nunca conheci unzinho sequer pessoalmente. Nem pra remédio. Minha amostra é, portanto, extremamente viciada.

Mas para os propósitos deste ensaio, serve. Há uma legião bem disseminada de céticuzinhos que se declaram ateus. Mas eles não são ateus porque não acreditam na existência quaisquer deidades (para os que não sabem, essa é a definição de ateu). São ateus porque não querem que nada sobrenatural exista, quiçá deixe a menor possibilidade de existência no ar... Se declaram ateus porque se acham céticos. Mas o que o céticuzinho não sabe (ou finje que não sabe) é que ser cético não é necessáriamente não acreditar em deus(es), qualquer que seja, uma vez que a atitude cética é duvidar e investigar, e não descartar totalmente todas as possibilidades. Nesse sentido, o céticuzinho em nada difere do dogmatista...

Mas, por favor, não interpretem errôneamente o parágrafo acima. Eu pessoalmente não tenho, nunca tive, e nunca terei absolutamente nada contra os ateus. Só estou analizando o ateísmo sob a ótica do céticuzinho.

O que também me impressiona nos céticuzinhos é a quantidade de tempo livre que eles dispõem para "debater" nos fóruns virtuais. Na realidade, acho que para o céticuzinho nada há de mais prazeiroso do que "debater". Desbanca o sexo, o futebol, o cinema, a praia, a família... Enfim, todos esses prazeres mundanos e irrelevantes (para o céticuzinho, é claro). Mas reparem as aspas (novamente) na palavra debater. É que, para o céticuzinho, as toneladas de ataques ferrenhos às idéias/religiões/opções alheias é debater. Pobre céticuzinho, mal sabe ele que o debate passa longe do ad hominem gratuito e desnecessário, não raro incremetados por generosísimas doses de xiliques, pitis e faniquitos, evidenciados pelas risadinhas nervosas ao final de cada parágrafo. Mais uma vez, aqui o céticuzinho em nada difere do seu suposto oponente intelectual, que é o dogmatista.

Chego a pensar que, na realidade, o céticuzinho é uma espécie de dogmatista às avessas. As razões são diferentes, mas o fundamentalismo, o ódio, são os mesmos.

Mas, qual será o futuro do céticuzinho? Irão eles dominar a sociedade com suas idéias céticuzinhas? Felizmente, na minha opinião, não. Porque? Porque o céticuzinho não sai do Orkut.

Para a felicidade geral da nação.

That's all folks!

Plei

Wednesday, March 07, 2007

Cajuína


Cajuína
Caetano Veloso

Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina


Acho que não é mais segredo para ninguém que meu artista preferido é, sempre foi e provavelmente sempre será o Caetano. E quando digo artista preferido, eu estou considerando a obra, e não a pessoa. Eu, como admirador do artista, sei que ele muitas vezes não é coerente nas idéias ou posições expressas ou ditas, mas isso em nada ofusca a arte que ele produz e, lembremos, ele é apenas humano, como eu e você.

Portanto, anti-caetanistas, anti-MPBzistas e anti-brasileiros de plantão: larguem as suas pedras, não haverá necessidade de joga-las (nem em mim, nem no gênio baiano). Pelo menos não hoje.

Todos os que me conhecem já devem ter percebido minha "Caetania" em algum momento da nossa convivência. O que poucos sabem, no entanto, é que "Cajuína", cuja letra está no início desse texto, é a minha música preferida desse compositor. Obviamente, a letra, a melodia e os significados (implícitos e explícitos) desta música são belíssimos. É uma verdadeira obra-prima em língua portuguesa, em meros 8 versos, 56 palavras e 299 letras. Coisa até corriqueira para a genealidade desse baiano do recôncavo.

Mas tem algo sobre a letra que poucos sabem, e que quero deixar aqui registrado.

Reza a lenda que Caetano fez essa música depois de uma experiência pessoal-espiritual em uma das suas turnês. Conta-se que ele iria tocar em um clube em Teresina, capital do Piauí. Havia um rapaz do interior do estado que juntou um dinheirinho para comprar o ingresso e a passagem de ônibus para assistir ao Caetano na capital. Parece que esse rapaz era bem humilde e pobrezinho, mas fez questão de levar presentes para o artista, que tinha esperanças de encontrar depois do show. Os presentes que o moço estava levando eram uma garrafa de cajuína e uma rosa.

Ocorre que houve um acidente com o ônibus que ia para Teresina e o rapaz faleceu.

Alguns meses depois, o pai do rapaz teria enviado a Caetano uma carta falando do sinistro ocorrido com o filho junto com uma foto recortada de um jornal de Teresina. Na foto, tirada do público durante o show, aparecia o filho que havia morrido, portando a garrafa de cajuína e a rosa - os presentes que ele queria dar para Caetano.

Caetano então ficou tão impressionado e emocionado, que compôs essa música em homenagem ao moço. Quem agora sabe da estória pode ver seu significado na letra da música.

Mas reparem que eu usei termos como "reza a lenda", "conta-se", "parece", "teria". Isso foi proposital, pois no momento não tenho como verificar a autenticidade desta estória. Eu me lembro de ter lido em algum lugar, não lembro se em uma revista ou se em algum site da internet. [Anti-cético mode on] Sorry, incrédulos de plantão, mas nem a revista e nem o site eram espíritas ou tinham qualquer coisa a ver com espiritismo[Anti-cético mode off]. Vou tentar checar essa informação com a acessoria de imprensa do Caetano, mas não acho que esse é o tipo de e-mail que eles estariam dispostos a responder, nem acredito que uma mensagem minha com essa pergunta chegaria ao próprio Caetano.

Portanto, por hora, concedo-me o benefício da dúvida.

E o extendo a você, leitor.

Em tempo: a figura que ilustra o texto é a capa do disco "Cinema Transcedental", de 1979, quando "Cajuína" foi gravada pela primeira vez.

Namastê.

Plei