Racismo no Brasil: das causas verdadeiras à hipocrisia política – e porquê eu sou contra cotas
Haiti
Composição: Caetano Veloso e Gilberto Gil
Quando você for convidado pra subir no lado Da fundação casa de Jorge Amado Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos De ladrões mulatos e outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados E não importa se os olhos do mundo inteiro Possam estar por um momento voltados para o largo Onde os escravos eram castigados E hoje um batuque um batuque, um batuque Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária Em dia de parada E a grandeza épica de um povo em formação Nos atrai, nos deslumbra e estimula Não importa nada: Nem o traço do sobrado Nem a lente do fantástico, Nem o disco de Paul Simon Ninguém, ninguém é cidadão Se você for a festa do pelô, e se você não for Pense no Haiti, reze pelo Haiti O Haiti é aqui O Haiti não é aqui E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer Plano de educação que pareça fácil Que pareça fácil e rápido E vá representar uma ameaça de democratização Do ensino do primeiro grau E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto E nenhum no marginal E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco Brilhante de lixo do Leblon E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo Diante da chacina 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos E quando você for dar uma volta no Caribe E quando for trepar sem camisinha E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba Pense no Haiti, reze pelo Haiti O Haiti é aqui O Haiti não é aqui
Da letra de música acima, surge o cerne do problema “racial” brasileiro: o racismo no Brasil não é, e nem nunca foi, somente problema da concentração de melanina na pele, da cor dos olhos ou da textura dos cabelos. É bem mais complexo do que isso. Tanto que somos uma nação de mestiços, onde a união de brancos, negros e índios sempre foi lugar-comum na história do nosso povo. É um problema social, e não racial, como querem alguns. Ou alguém aí duvida que o branco pobre também não sofre o mesmo tipo de preconceito que o preto pobre? Ou o quase-branco? Ou o quase-preto?
Os comodistas, os canalhas e os aproveitadores de plantão vão sempre bradar a mesma ladainha, que esse é um meio de corrigir erros históricos, que é o único meio de incluir as classes menos favorecidas no país, e todo o blá, blá, blá demagógico padrão.
Bom, vamos analisar imparcialmente.
Existe realmente um erro histórico? Sim, parcialmente tem algo errado aí.
Mas porque disse parcialmente? Bem, para quem estudou um mínimo de história sabe que, quem caçava, estocava e comercializava os negros na África com os europeus que administravam as colônias na América eram... os próprios negros. Vejam bem, não estou querendo aliviar a responsabilidade dos brancos europeus nesse contexto todo, mas por outro lado seria hipocrisia excluir a parcela de responsabilidade Africana. A maldade humana, assim como o amor, senhoras e senhores, não tem cor. Penso eu que, se os povos da África não tivessem sido eles mesmos sociedades escavocratas desde sempre e que se tivessem se organizado em estados pluriculturais nos moldes de qualquer estado ocidental que conhecemos, talvez a história tivesse sido diferente de tal e qual a que conhecemos hoje. Ou pior, vai saber...
Esse é o único meio de democratizar a situação social no Brasil?
Não.
E eu reafirmo categóricamente: NÃO.
Na realidade, esse é outro e enorme erro.
Primeiro, porque não se corrige erros históricos da noite para o dia. Essa é a soluçãozinha mágica, hipócrita e eleitoreira que parasitas sociais, ops! digo! que os políticos brasileiros querem lançar mão. Um erro histórico requer um tempo razoável para ser corrigido. E o único – eu repito aqui: O ÚNICO – meio de se conseguir isso é através da educação.
E não estou falando da educação superior, a qual nunca foi o problema no Brasil e que sempre funcionou bem (se bem que com as tentativas incisivas do governo em exterminar com ela, eu não sei até quando isso vai durar, mas isso é assunto para todo um outro ensaio...). É na educação de base, como enfatizam bem Caetano e Gil logo no meio da letra de Haiti:
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer Plano de educação que pareça fácil Que pareça fácil e rápido E vá representar uma ameaça de democratização Do ensino do primeiro grau
Para os “céticos” de plantão, temos um exemplo vivo disso diante dos olhos do mundo inteiro – o candidato eleito da corrida presidencial estadunidense: Barack Obama. Um negro (ou melhor, mulato, mas a mídia está fazendo vista grossa para esse fato) estar chegando ao principal posto político dos Estados Unidos – esse sim um país racista no sentido strictu sensu da palavra – é o resultado de uma educação igualitária (ainda que aquele país, eu repito, seja racista!). Lá, diferentemente daqui, não existem cotas raciais. Ao cidadão cabe conquistar seu lugar e prestígio na sociedade basicamente através de sua competência pessoal. E o meio (educação democratizada) é dado. Ainda que os EUA estejam 98 atrasados nesse particular – o Brasil teve o primeiro presidente de ascendência africana das Américas, Nilo Peçanha, entre 1909 e 1910 – esse é, com efeito, um grande feito em termos de democracia.
Vão argumentar que no Brasil isso nunca funcionou e que por isso as cotas são necessárias. Lorota. Temos vários, honrosos e valorosos casos de que essa é uma falsa premissa. Por exemplo, o intelectual Rui Barbosa, o escritor Machado de Assis, o Maestro Carlos Gomes, o político e farmacêutico José do Patrocínio, o engenheiro, geógrafo e historiador Teodoro Sampaio, e Antônio Pereira Rebouças Filho o engenheiro que no séc. XIV foi responsável pela construção da Estrada de Ferro de Campinas a Limeira e Rio Claro, da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá e da rodovia Antonina-Curitiba ou o já citado Nilo Peçanha, presidente da república, eram mulatos. Mas os cotistas de plantão vão voiciferar: ah! Mas não eram negros! Diante desse argumento pífio, eu devo me questionar: quem é racista aqui mesmo? OK, esses exemplos não eram “afro” o suficiente, pois estavam (sic) contaminados com sangue europeu.
Bem, talvez se eu citar o glorioso geógrafo (ha pouco falecido) Milton Santos, será que ele tem melanina o suficiente na pele para sossegar os ânimos dos racistas...ops! digo! os cotistas mais afoitos? Ou quem sabe o negro que comprou sua própria liberdade nos tempos de império e que foi o primeiro presidente do primeiro banco brasileiro (o Banco do Brasil)? Ou o advogado, abolicionista e negro, Luís Gama? Também não posso deixar de citar Juliano Moreira, um dos primeiros médicos negros do continente americano (talvez da história, se pensarmos na medicina nos moldes ocidentais) formado na Escola de Medicina da Bahia, ainda no sec. XVI, que além de tudo lecionava nessa mesma instituição? Ou nosso ex-ministro da cultura, Gilberto Gil (aqui os racistas, ops! digo! os cotistas de plantão vão dar xiliques, pitis e faniquitos gritando: Esse não vale! Ele é Artista!!!! Sim, ele é artista, mas é formado em Administração de Empresas com pós nos EUA e tudo mais. E, antes dele, o pai era médico – e tão negro quanto ele...). Ou Maria José Bezerra? Ou a Marisa, minha saudosa professora de matemática, que é negra também?
Eu pergunto para os racistas, ops! perdão novamente! os cotistas de plantão: haviam cotas raciais no tempo de todas essas pessoas?
O próximo passo dos defensores do racismo... ops! digo! das cotas raciais será: ah! Mas a imensa maioria dos negros continuam excluídos! Bom, e se ao invés de tentar privilegiar uma pequena parcela da população dita “negra” (sim, porque, por mais cotas que sejam inventadas, a imensa maioria dessa população ainda vai permanecer excluída), não democratizamos a coisa e asseguramos a todos o que está escrito na constituição: acesso universal a uma educação pública, gratuita e de qualidade? Para a população excluída não vai ser uma vantagem imediata, mas para seus filhos com certeza será. Os filhos e netos dos hoje excluídos viriam a ser os incluídos de amanhã, da forma justa, correta e honesta de se fazer a coisa.
Criar cotas para isso e aquilo, além de tornar o racismo oficialmente uma política de governo, é uma solução hipócrita, demagógica e que, convenhamos, não reolve nada. Só faz tapar o sol com a peneira. Eu, como pelo menos 80% da população brasileira, provavelmente posso ter também sangue africano correndo em minhas veias. Poderia esmiuçar a minha genealogia, achar um ou vários antepassados negros e alegar aos quatro ventos que sou afro-descendente, segundo as diretrizes do Movimento Negro brasileiro e que, portanto, tenho direito a minha cota: farinha pouca, meu pirão primeiro. E mesmo se não tiver ascendência africana, com certeza tenho ascendência ameríndia, daí poderia requerer a minha cota de minorias do mesmo jeito.
Mas eu não faço isso porque, além de ser uma adesão sumária e inequívoca a política racista e discriminatória do atual governo, da qual não compactuo, mesmo porque eu não faço distinção entre as pessoas por etnia, (1) minha ética não permite e (2) tenho plena segurança na minha competência profissional para pleitear uma vaga de trabalho onde quer que seja...
Mas aí eu me pergunto: e quem não tem nem uma coisa, nem outra (que, infelizmente, não são poucos no nosso país)?
Tristes tempos esses que nós vivemos.
Em tempo: este é um assunto delicado e complexo, e que certamente mexe com os brios de muita gente. Tudo o que escrevi acima é opinião pessoal minha, o que não significa que eu não possa mudar de opinião – isso vai depender, outrossim, do contexto e de razões que possam me levar a pensar diferente (ou não): eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.
Não espero que ninguém concorde 100% comigo, afinal, é apenas minha opinião pessoal. Aos que discordam do que escrevi, eu convido à reflexão. Eu mesmo li um sem número de matérias e ensaios pró- e contra-cotas antes de redigir o meu texto. E se mesmo assim alguém ainda ache indigesta minha opinião (lembrando que eu não obrigo e nem pretento fazer ninguém “engolir” a mesma), só posso incentivar a escrever/filosofar/divulgar o que você(s) acredita(m) que seja o contraponto à minha opinião – se ela for assim tão importante para você(s) ao ponto de precisar ser respondida/questionada/combatida. Só uma coisa eu não abro mão: respeite a minha opnião, assim como eu sempre vou respeitar a sua, mesmo que não concorde com ela.
Após vários meses de silêncio, vou atualizar este blog com uma crítica a uma nação.
E essa nação é a Espanha.
Para o leitor mais afoito, ou politicamente correto, ou que simplesmente não gosta do que eu escrevo (ou de mim, não que eu me importe com isso), sugiro uma leitura imparcial do texto em sua integridade. Quem sabe isso poderá mudar a sua opinião.
Caso contrário, recomendo abandonar a leitura à partir daqui. Acredite: é um favor que estará prestando a si mesmo.
Antes de tudo, gostaria de esclarecer que eu mesmo sou descendente de espanhóis por parte de meu avô paterno (e definitivamente me orgulho disso!), que reconheço a contribuição dos imigrantes ibéricos na colonização de meu estado de nascimento (São Paulo) bem como sua cota de mérito na consolidação do Brasil como a nação que nós conhecemos hoje em dia. Isso sem falar nas contribuições dos espanhóis para a ciência, a cultura, a arquitetura e as artes de uma maneira geral.
Em tempo: tudo que será lido abaixo é apenas a exposição de minha opinião pessoal. Não há, em momento algum, qualquer intenção de se ofender a Espanha como nação, tampouco seus cidadões. Mas trata-se de uma crítica e a crítica, por definição, pode não agradar uns e outros.
Recentemente a imprensa divulgou, em suas diversas mídias, incidentes de brasileiros sendo deportados da Espanha ainda no aeroporto internacional de Barajas*, em Madri, sem qualquer justificativa palpável para tal. Grupos de brasileiros honestos e decentes, alguns universitários em visita ao país para irem a congressos, trancafiados por dias em salas vigiadas por guardas, sem acesso a telefone ou banheiro, aguardando um posicionamento das autoridades locais e sendo vítimas de abusos verbais de toda ordem por parte dos agentes de imigração.
Os abusos verbais divulgados me chamaram bastante a atenção. Os homens eram chamados de "porcos traficantes". As mulheres de "prostitutas". O teor das ofensas revela, além de uma clara válvula de escape para a frustração pessoal desses agentes, um teor de xenofobia incongruente com a índole dos povos latinos de uma maneira geral.
Não vou ser presunçoso (ou ingênuo, dependendo do ponto de vista adotado) ao ponto de alegar que todo brasileiro é de caráter reto e inabalável, e que não existem brasileiros indo a Europa justamente com o objetivo de praticar esses atos ilícitos voiciferados pelos tais agentes da imigração. Isso de fato, infelizmente, acontece.
Só que o buraco é mais embaixo. Eu diria beeemmm mais embaixo.
Primeiro, vamos analizar pela lógica nua e crua: se não houvesse cidadões espanhóis consumidores de drogas e de prostituição, certamente não haveria interesse de criminosos (de qualquer nação) em se inserir e operar no país. É a famosa lei da oferta e da procura. Então, as acusações desses agentes de imigração estão mais para o sujo falando do mal lavado, do que o senso de dever cívico de proteger a sua pátria propriamente dito.
Segundo: os brasileiros foram detidos e extraditados sem acusação formal. Pior: sem quaisquer tipo de prova que justificassem o ato. Para um país cujas leis incluem o julgamento de "crimes contra a humanidade", tanto os políticos como os de guerra, mesmo os não praticados em terras espanholas (vide os louváveis esforços espanhóis em julgar o general Pinochet), os abusos cometidos no aeroporto de Barajas são um incidente vergonhoso, para se dizer o mínimo.
Sabe-se que a Espanha em particular, e a Europa de uma maneira geral, estão atualmente sofrendo um problema sério com a imigração ilegal. Mas daí usar turistas brasileiros como bodes espiatórios da situação extrapola todos os limites do bom-senso. E das boas relações internacionais.
Mas minhas críticas não se restringem somente ao episódio da extradição injustificada de brasileiros. Também quero apontar a emergente arrogância da Espanha no cenário mundial. Se a mesma é fruto ou não do tradicional e milenar orgulho latino, ainda não consegui descobrir.
Mas vamos lá:
Ano passado quando estive na Ilha da Madeira, fiquei sabendo, para meu espanto e desgosto, que a Espanha periódicamente envia navios de guerra para os arredores do arquipélago, pois eles reinvindicam, com base em fatos históricos um tanto que obscuros, que duas ilhas do arquipélado da Madeira, as ilhas Selvagem e Deserta, respectivamente, pertenceriam a Espanha. Portugal, então, é obrigado a mobilizar vasos de guerra para a região para re-atestar sua jurisdição sobre as duas pequenas ilhas com a mesma periodicidade.
Além de ridículo, é um ato que só faz ferir e enfraquecer a relação milenar das duas nações ibéricas, cujas histórias se mesclam no passado ao ponto de não se distinguir uma da outra, dependendo do período histórico considerado. E, estratégicamente falando, é um tiro no próprio pé, pois mesmo que a Espanha eventualmente tomasse as duas pequenas ilhas, tal ato iria ser automáticamente repudiado pela comunidade internacional, incluindo a União Européia (UE) da qual Espanha e Portugal fazem parte. O máximo que iria acontecer seria a ONU, a OTAN, ou a própria UE obrigarem a Espanha a devolverem as ilhas a Portugal.
E eu me pergunto: tudo isso pra quê? Só pode ser para a Espanha exibir suas forças armadas, porque até onde sei ainda existe muita terra nos territórios espanhóis para seus cidadões viverem, além do que as duas pequenas ilhas são inóspitas e só têm valor como reservas naturais e arqueológicas.
Outra coisa que não me entra na cabeça foi a Espanha ter enviado tropas ao Iraque. Logo a Espanha que, como citei acima, uma nação julgadora de crimes contra a humanidade? É um paradoxo.
A pergunta que não quer calar é: será que as forças armadas espanholas são assim tão boas? O que há de tão especial ao ponto de se mandar tropas para baterem ponto no Iraque, ao lado das forças militares mais capacitadas e poderosas do planeta (EUA e Inglaterra)? A presença espanhola no Iraque era assim tão essencial e inprescindível? Falando nisso, qual motivo Espanha teve para se juntar ao conflito?
E agora voltando ao problema no arquipélado da Madeira: será mesmo que a marinha espanhola é assim tão superior a marinha portuguesa?
Sinceramente? Tenho cá as minhas dúvidas.
Afinal, uma nação querer se projetar no cenário mundial, seja mandando forças armadas para confrontos desnecessários ou extraditando turistas vindos da América do Sul, sendo custeada pelo dinheiro da UE, é fácil.
Uma verdadeira provocação de um país que no passado, antes do tempo das vacas gordas da UE, pediu 13 vezes moratória** ao FMI para sua dívida externa.
Nós no Brasil, pelo menos, nunca pedimos.
E quem paga nossas contas, quem financia nossas forças armadas, nossa infraestrutura e, por que não dizer?, nossos aeroportos, somos nós mesmos.
Hasta la vista.
Plei
* um belo e moderno aeroporto. Até metrô conectando seus terminais tem. Tudo financiado com os Euros da UE.
** moratória = ato unilateral de um estado declarando a suspensão do pagamento dos serviços da sua dívida externa.
Quando meu avô me contava que não existiam praias de areia na Ilha da Madeira, confesso que para mim era muito difícil imaginar. Mas de fato, não há praias arenosas na Ilha, salvo duas que foram artificialmente construidas...
Esquerda: praia de seixos em Funchal. Direita: vista do porto de Funchal
Ha cerca de um mês e meio, estive na Ilha da Madeira, realizando um sonho acalentado por pelo menos duas décadas. Trinta e cinco horas de viagem desde Cape Town, com conexão em Londres. Valeu cada segundo.
A Madeira é um território ultramarinho de Portugal, que denominam "Região Autônoma". Para quem não está familiarizado com a geografia da Macaronésia (o conjunto de ilhas do Atlântico Norte que inclui, além da Madeira e Porto Santo, as Ilhas Canárias e o Arquipélago dos Açores), é difícil imaginar que aquela minúscula ilha ("parece uma cagadinha de mosquito no mapa", nas palavras de meu avô) a oeste da costa da Mauritânia, seja um lugar tão mágico.
A Madeira foi oficialmente descoberta pelo navegador João Gonçalvez Zarco, a serviço da coroa do então rei de Portugal, Infante Don Henrique, o Príncipe Navegador. No entanto, os gregos antigos já sabiam de sua existência. Pitágoras a chamava de "Ilha dos Dragões", embora nenhum réptil mitológico cuspidor de fogo lá existisse, e sim uma árvore chamada "Dragoeiro", que fornecia um corante vermelho-fogo largamente ultilizado na tintura de tecidos no mundo antigo. Mesmo assim, há evidências que povos ainda mais antigos, da idade do bronze, já visitavam a região, embora nunca tenham se assentado por lá.
Mas, muitos séculos depois, os portugueses decidiram lá ficar. Na realidade, a Madeira foi um grande laboratório, onde os europeus pela primeira vez "ensaiaram" o processo de ocupação de territórios fora da Europa que depois viria a ser conhecido como colonização. Mas os portugueses tiveram dificuldade para adentrar a Ilha. Em parte por causa da ausência de praias de areia e áreas abrigadas, em parte por conta da densa floresta que recobria a Ilha (daí o nome "Ilha da Madeira"). A segunda dificuldade eles resolveram de um modo radical aos olhos do mundo atual, mas prático na época: eles atearam fogo na floresta. Pior: o fogaréu se extendeu por sete anos seguidos. Me faz pensar que talvez eles temessem a possível existência de uma população nativa, ou mesmo bestas e monstros habitando a floresta impenetrável.... Pelo jeito a colonização da Ilha foi amplamente financiada pelos Templários, dado que a Cruz de Malta é emblemática, aparecendo no brasão da cidade do Funchal e em muitas igrejas, onde substituem as cruzes tradicionais.
Presença emblemática da Cruz de Malta: na Capela de Santa Catarina e no brasão da cidade do Funchal
Os colonos da Madeira vieram principalmente do sul de Portugal, da região do Algarve. Na ilha os portugueses introduziram os primeiros engenhos de açúcar, as vinhas que viriam a dar origem ao famoso vinho Madeira e bananeiras importadas da China. Todas essas culturas vingaram, pois o solo da ilha, de origem vulcânica, era (e ainda é) extremamente fértil, sustentando a ecomomia por muito tempo. No entanto, com a posterior colonização do Brasil (com um território infinitamente maior, e portanto com muito mais produção) a economia da Ilha viria a sucumbir (principalmente no que se refere a cultura da cana-de-açúcar).
A crise agrícola viria a ser sanada muitos anos depois com o desenvolvimento do turismo. A Madeira foi um dos primeiros destinos turísticos frequentados pelos europeus. Talvez por isso o povo madeirense seja tão amigável, prestativo e acolhedor. A Madeira foi, por muitos anos, a única parada dos navios que faziam a rota entre a Cidade do Cabo e Londres. Isso explica o porquê da imensa colônia madeirense aqui em Cape Town. A atividade turística também alavancou o aparecimento de dois valorosos produtos da Ilha: o famoso vinho Madeira, forte e encorpado, que passou a ser muito apreciado pelos europeus, e o bordado da Madeira, item obrigatório no enxoval das noivas inglesas dos século XIX e meados do século XX.
Pois bem. Nessa ilha tão pitoresca, quase perdida no meio do oceano, surgiu o ramo português da minha família. Os "Pinecos". Não sei muito sobre a origem dos Pinecos na Ilha, mas provavelmente se originaram das famílias de colonos vindos do Algarve. De início os Pinecos tinham o sobrenome "de Freitas", o qual depois foi acrescido de "Silvestre", que na realidade não é sobrenome, e sim uma homenagem que os Madeirenses fazem a São Silvestre quando a criança nasce no 31 de Dezembro. Alguém lá no passado resolveu homenagear um pai ou avô e colocou o Silvestre no registro do nome. E ele ali ficou... Pineco eu sou da parte do meu bisavô. Da parte da minha bisavó, seria da família "do Patrocínio", conhecidos como "Nocas", dos quais pouco sei.
Os Pinecos e outras famílias (os Nocas, os Estrelas, os Bandidos, etc...) habitavam uma espécie de fazenda que se extendia até a beira-mar. Alguns eram donos de terra, outros trabalhavam em regime de arrendamento. A fazenda ficava em uma região costeira conhecida como Lido, por sua vez inserida na zona de Nossa Senhora da Ajuda que por sua vez faz parte da Freguesia de São Martinho. No Lido a maioria era Pineco, e quando não eram Pineco, eram compadres e comadres. Os casamentos se davam ali mesmo entre os conhecidos da comunidade... Abaixo, uma foto minha junto ao Ilhéu do Gorgulho, marco importante para os Pinecos (para um Pineco ser considerado apto a ir para mar, ele tinha que nadar do ilhéu até a costa em tenra idade):
Ilhéu do Gorgulho. Lugar ancestral...
Por muito tempo pensávamos, minha mãe e eu, que já não tínhamos mais parentes vivendo na Ilha. Pelo que sabíamos, todos tinham deixado a Madeira. Porém, coisa do destino, acabei por descobrir que temos sim parentes vivendo lá. Primos em primeiro e segundo graus da minha mãe. A estória desse achado é longa, por isso vou resumir aqui: encontrei em uma comunidade do Orkut relacionada a Ilha da Madeira um tópico aberto por uma moça, a Márcia, perguntando se alguém ali era "de Freitas Silvestre". Eu entrei em contato com ela, dizendo que era da família dos Pinecos e tals. Bingo. Ela depois me passou o contato da tia dela, a quem procurei. No final das contas, descobri que somos parentes, até fotos da visita o meu avô a Ilha eu vi. Abaixo minha foto com a minha prima Pineca, a Luisa:
Eu e a Luisa...
Na realidade, um dos pontos altos da minha passagem pela Ilha foi o encontro com a Luisa e sua família, e tudo o que se desenrolou depois: a descoberta dos laços familiares, a visita ao antigo lar dos Pinecos onde tive o privilégio de conhecer a casa onde meu avô nasceu (veja abaixo), a espetada madeirense em um lugar que não é para turistas, o passeio até o extremo leste da Ilha e Porto Muniz... E além da Luisa, do Luis (marido) e da Cristina (filhinha), descobri qe há mais pelo menos três outros Pinecos na Ilha, uma outra prima no Brasil (Gorete, irmã da Luisa, mãe da Márcia) e um primo em Londres (o Zé Manuel, irmão da Luisa e da Gorete). Depois desse re-encontro, acho difícil dizer que não existe destino.
A casa dos Pinecos. A esquerda, a casa onde meu avô nasceus (seta). A direita, sou eu na entrada da casa. Momento raro, pois a casa será demolida em breve para dar lugar a mais um hotel...
Uma coisa que me impressionou na Madeira foi constatar que a Ilha é intensivamente cultivada. Cada espaço de terra é plantado, mesmo no Funchal. Eles plantam em terraços, localmente chamados de "poios", e o clima permite uma diversidade de culturas que só se encontra aqui: próximo ao mar temos as bananeiras e a cana-de-açúrcar, subindo as montanhas começam os vinhedos. E tudo isso feito no braço: a ilha é muito escarpada para permitir o uso de tratores, por exemplo. A irrigação é feita por canais construídos artificialmente que levam a água das nascentes nas montanhas para os poios, daí chamados de "levadas". Abaixo, uma visão dos poios:
Os terraços da Madeira
O grosso da produção agrícola é vendido a Portugal, mas tem muita coisa comercializada localmente, como podemos constatar em uma visita ao mercado dos lavradores no Funchal:
Mercado dos Lavradores. Notem a variedade de produtos
A culinária da Ilha é espetacular e tem sido uma das minhas melhores recordações. Como era de se esperar em uma ilha no meio do mar, e um território lusitano por excelência, a comida típica da madeira são os frutos do mar. Tive a oportunidade de provar pratos que desde sempre povoaram a minha imaginação, como as famosas lapas grelhadas, o atum com milho frito, a espada-preta (foto abaixo) com bananas e, como não poderia deixar de ser, o polvo de ceboladas! Todos os pratos muito bem preparados e de um sabor espetacular... Tenho que confessar uma coisa: a caldeirada que comi na Madeira é a única até agora que superou a caldeirada preparada pela minha mãe (e olha que isso não é pouca coisa...).
Esquerda: Espada-preta (Aphanopus carbo). Direita: o cefalópode Rodrigo plei predando sobre filé de A. carbo com bananas na Madeira. Notem o auxílio luxuoso de um bom vinho branco português...
De quebra fui com a Luisa e o Luis em um restaurante fora da rota turística onde pude apreciar a famosa espetada madeirense, tão popular aqui na Cidade do Cabo mas incomensurávelmente melhor na Ilha, como não podia deixar de ser. Abaixo eu com meus primos no restaurante da espetada:
Eu, Luis e Luisa, na Espetada Madeirense. Só diretoria...
Um passeio imperdível na Madeira são as Grutas de São Vicente, que na realidade, são cavernas. Mas o que essas cavernas têm de tão especial que merecem ser citadas aqui? Bem, são cavernas únicas, pois não são de origem sedimentar e sim vulcânica: foram escavadas pela ação da lava líquida que corria nas entranhas da Ilha quando ainda vulcanicamente ativa, ha alguns poucos milhões de anos. É um dos poucos lugares do mundo onde se pode ver esse tipo de formação geológica.
Galeria da gruta de S. Vicente.
Os portugueses são muito religiosos, católicos fervorosos e constatei isso em todo lugar: há uma igreja praticamente em cada esquina, e imagens de santos, principalmente São José e Nossa Senhora de Fátima são figuras quase que onipresentes nas fachadas das casas:
Santos de azulejos
Cheguei a Ilha em uma época de festas, era época de comemoração de Nossa Senhora do Monte, padroeira da Ilha. A população em peso subiu o monte para agradecer a padroeira, muitos portando os círios (aquelas velas imensas) como pagamento a alguma graça alcançada. A igreja também estava toda decorada com flores de plástico multicoloridas, compondo uma paisagem bem tradicional. Um evento a parte é a festa que ocorre na vizinhança da igreja, uma espécie de quemesse onde as famílias vão, compram carne ali mesmo, espetam em paus de louro fornecidos pelos próprios açougueiros e assam em churrasqeiras comunitárias. Refrescos, a famosa poncha madeirense, e o delicioso bolo-do-caco tabém estão disponívies para a compra.
Igreja de Nossa Senhora do Monte enfeitada para a festa da padroeira. Notem os fiéis carregando os círios.
Outro ponto pitoresco que denota a fé do Madeirense é a Igreja da Nossa Senhora da Paz. Fica bem no alto do monte, quase inacessível. O primo Luis me levou lá e me contou a história do lugar, fascinante: na segunda guerra, submarinos alemães torpedearam Funchal e afundaram alguns navios. Os pescadores se reuniram e pediram a Nossa Senhora que intercedesse pela ilha e acabasse com os ataques. Fato foi que no dia seguinte os alemães se foram. Para pagar a promessa, os pescadores fizeram um rosário gigante com as correntes dos barcos naufragados e pedras do porto de Funchal, levaram o rosário nas costas até o ponto mais alto do monte e lá construiram a Igreja, que ficou conhecida como Igreja de Nossa Senhora da Paz por causa desse evento.
Nossa Senhora da Paz e seu rosário gigante
Por último, não poderia deixar de citar as famosas casinhas da Madeira, minúsculas construções em forma de cabana onde - pasmem, realmente vivem pessoas - e que encantam os turistas. São mais comuns na região de Santana, na costa norte da Ilha, mas mesmo em Funchal se encontra esse tipo de contrução.
Casinhas em Santana
E essa foi a minha primeira viagem a Madeira. Muitas outras ainda farei...
Que Nossa Senhora do Monte (padroeira da Ilha da Madeira) e Nossa Senhora da Ajuda (protetora dos Pinecos) nos abençoe a todos.
Clipe da cidade de São Paulo, ao som de Sinfonia Paulistana
Eu sou paulistano do Bixiga.
Devo ter vivido naquele bairro por um ou dois dias, que foi o tempo que minha mãe ficou no hospital. Mas mesmo assim, eu nasci lá, na maternidade do agora (infelizmente) extinto Hospital Matarazzo (... da força da grana que ergue e destrói coisas belas; já profetizava Caetano). Ficava em uma travessa da Avenida Paulista.
Vivi em São Paulo por breves onze anos da minha vida. Depois veio São Bernardo, Americana, Rio Grande, Balneário Camboriú, Florianópolis, Curitiba e agora, fora do Brasil, Cidade do Cabo.
Apesar de toda essa migração, e desses 20 anos de separação da terra natal, eu sou e continuo me sentindo muito paulistano. Até um pouco do sotaque e das gírias eu uso até hoje: semáforo é farol, atendo o telefone (em português, claro) dizendo "aloah" e uma série de outras coisas que me fogem a mente no momento. Além disso, o passo sempre apressado e a mania de trabalhar (sabem como é, na prece do paulista, trabalho é o Padre-Nosso...) denunciam minhas origens.
Vejo São Paulo com a cidade mais acolhedora do planeta, mas vou escrever sobre isso em outra oportunidade. Esse ensaio é sobre a músicalidade da terra dos bandeirantes, que me enchem de alegria e saudades. Mas, brevemente, devo dizer que pela miscelânea cultural de tantos povos e etnias, São Paulo é deveras singular.
E toda essa singularidade paulistana se reflete na sua música e seus compositores. A música de São Paulo, brasileiríssima por excelência, é muito pitoresca no sentido de que em suas mais profundas e tradicionais raízes, mescla o samba canção com o sotaque italiano, criando canções de sonoridade única. Claro, há também várias outras linhas músicais bem características, como o Rock'n'Roll d'Os Mutantes e do Ira!, as canções escrachadas e as performances teatrais do Língua de Trapo e do Premeditando o Breque, os sambas com sotaque da Móoca da saudosa Miriam Batucada, o pioneirismo do movimento punk no Brasil por Kid Vinil e o grupo Magazine, além de vários outros que me escapam à memória no momento. Mas o samba canção paulistano é o mais típico, na minha modesta opinião. Lembrem-se: eu não sou músico, e não conheço muita coisa de música (meu negócio é lula); sou só um humilde apreciador. Aos gabaritados que por ventura lerem essas linhas, solicito compreenção ante a minha limitação no tema.
Talvez a mais conhecida delas, que nem criada por um paulistano foi, revela nos arranjos e na melodia toda essa panacéia paulistana. Falo de Sampa, composta e gravada por Caetano Veloso em homenagem à paulicéia desvariada. A música fala das impressões de um baiano vivendo na terra da garoa; como é muito conhecida, vou me abster de postar a letra. Mãããããããsssss... deixo clipe abaixo, para quem quiser ouvir a música online:
Outro nordestino que foi seduzido pela cidade de São Paulo (tanto que nunca mais foi embora) é o gênio musical Tom Zé. Embora a obra de Tom Zé seja até certo ponto menos conhecida do que a de seu conterrâneo, o garoto de Irará é tão (ou algumas vezes, até mais) genial do que o menino de Santo Amaro da Purificação. Em homenagem à terra que o adotou e acolheu, Tom Zé nos honra com a algumas canções que tem São Paulo como tema, das quais deixo a seguir letras de duas delas:
SÃO SÃO PAULO
São São Paulo, quanta dor São Sâo Paulo, meu amor
São vinte milhões de habitantes de todo canto e nação que se agridem cortesmente correndo a todo vapor e amando com todo ódio se odeiam com todo amor são vinte milhões de habitantes aglomerada solidão por mil chaminés e carros gaseados a prestação.
Porém com todo defeito te carrego no meu peito.
São São Paulo, quanta dor São São Paulo, meu amor
Salvai-nos, por caridade! Pecadoras invadiram todo o centro da cidade armadas de ruge e batom dando vivas ao bom humor num atentado contra pudor.
A família protegida o palavrão reprimido um pregador que condena [um festival por quinzena]
Porém com todo defeito te carrego no meu peito.
São São Paulo, quanta dor São São Paulo, meu amor
Santo Antonio foi demitido e os ministros de Cupido armados da eletrônica casam pela tevê crescem flores de concreto céu aberto ninguém vê.
Em Brasília é veraneio no Rio é banho de mar o país todo de férias e aqui é só trabalhar.
Porém com todo defeito te carrego no meu peito.
AUGUSTA, ANGÉLICA E CONSOLAÇÃO*
Augusta, graças a Deus, graças a Deus, entre você e a Angélica eu encontrei a Consolação que veio olhar por mim e me deu a mão.
Augusta, que saudade, você era vaidosa, que saudade, e gastava o meu dinheiro, que saudade, com roupas importadas e outras bobagens.
Angélica, que maldade, você sempre me deu bolo, que maldade, e até andava com a roupa, que maldade, cheirando a consultório médico,
Angélica. Quando eu vique o Largo dos Aflitos não era bastante largo pra caber minha aflição, eu fui morar na Estação da Luz, porque estava tudo escuro dentro do meu coração
*são ruas famosas da cidade, na região da Paulista (N. do P.)
A mais recente homenagem do Tom Zé a São Paulo tem a música "Tem das Onze", de Adoniran Barbosa, como base. Essa eu consegui o clipe:
Ao leitor interessando na paulistanidade da música do Tom Zé, eu recomendo uma visita à web-page do músico, onde você poderá conhecer outras preciosidades como "A briga do Edifício Itália e do Hilton Hotel", "Interlagos F1" e muito mais.
Mas além de encantar e inspirar compositores baianos, até cariocas da gema já declaram em prosa e verso seu amor por São Paulo. Quer dizer, em música. Em 1992, o maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, vulgo Tom Jobim, um dos pais da Bossa Nova, compôs e gravou uma música em homenagem a São Paulo. Parece que ele não compartilhava da impressão injusta e jocosa de Vinicius de Moraes que chegara a declarar que a cidade era (sic) o túmulo do samba. Devaneio de gênio confuso, me arrisco a dizer. E vejam, ironia das ironias, Vinicius tinha em um paulistano (Toquinho), um dos seus melhores amigos e parceios musicais. Mas deixemos os devaneios do poetinha de lado e apreciemos letra da canção do Tom:
TE AMO SÃO PAULO
São Paulo, te amo Te amo, São Paulo Na tarde tão fria Busquei teu calor, teu amor em São Paulo São Paulo, te amo Pasión de mi vida I love you, querida Je t'aime São Paulo Io ti amo São Paulo I love you Te amo, São Paulo Te amo Te adoro, te adoro São Paulo, São Paulo, São Paulo Laiala laia la Sonhei com você em São Paulo
Como não poderia deixar de ser, o Rei Roberto Carlos, capixaba do município de Cachoeiro do Itapemirim, e gravou sua homenagem à terra da garoa, uma música do grupo paulistano Premeditando o Breque, cujos arranjos são um claro plágio de New York, New York, do velho blue eyes, mas que faz juz a grandiosidade da nossa Big Apple tupiniquim:
SÃO PAULO, SÃO PAULO
É sempre lindo andar na cidade de São Paulo O clima engana, a vida é grana em São Paulo A japonesa loura, a nordestina moura de São Paulo Gatinhas punks, um jeito yankee de São Paulo
Na grande cidade me realizar Morando num BNH. Na periferia a fábrica escurece o dia.
Não vá se incomodar com a fauna urbana de São Paulo Pardais, baratas, ratos na Rota de São Paulo E pra você criança muita diversão e poluição Tomar um banho no Tietê ou ver TV.
Na grande cidade me realizar Morando num BNH Na periferia a fábrica escurece o dia.
Chora Menino, Freguesia do Ó, Carandiru, Mandaqui, ali Vila Sônia, Vila Ema, Vila Alpina, Vila Carrão, Morumbi Pari, Butantã, Utinga, Embu e Imirim, Brás, Brás, Belém Bom Retiro, Barra Funda, Ermelino Matarazzo Mooca, Penha, Lapa, Sé, Jabaquara, Pirituba, Tucuruvi, Tatuapé
Pra quebrar a rotina num fim de semana em São Paulo Lavar um carro comendo um churro é bom pra burro Um ponto de partida pra subir na vida em São Paulo Terraço Itália, Jaraguá, Viaduto do Chá.
Na grande cidade me realizar morando num BNH Na periferia a fábrica escurece o dia Na periferia a fábrica escurece o dia
Honras a cidade de São Paulo vieram (pasmem!) até dos pampas gaúchos. A banda portoalegrense Engenheiros do Hawaii também prestou sua homenagem:
SAMPA NO WALKMAN
Este sou eu Parado na esquina A mesma esquina em outra canção (o barulho termina, começa a canção)
É a verdade A-ver-a-cidade Alguma coisa acontece no meu coração
Estas são elas Tuas meninas (nordestinas, erundinas) tua mais completa contradição
Esta São Paulo São tantas cidades Nunca tantas quantas gostaria de ser
Ouvindo Sampa no walkman (vidro, concreto e metal) Ouvindo Sampa no walkman Duvido de qualquer cartão postal
Este sou eu Parado na esquina A-ver-a-cidade, ouvindo a canção
Deuses da chuva Demônios da garoa Garotas propaganda além dos outdoors
FIESP, favelas Ouro & ferro velho Surfista ferroviário (o contrário do contrário do contrário do...)
Esta São Paulo São tantas cidades Nessas cidades eu vejo a canção
Ouvindo Sampa no walkman Samples de sons audiovisuais Ouvindo Sampa no walkman A ponte aérea, no metrô
Ouvindo Sampa no walkman (vidro, concreto & metal) Ouvindo Sampa no walkman Duvido de qualquer cartão postal Ouvindo Sampa no walkman Samples de sons audiovisuais Ouvindo Sampa no walkman na Ponte aérea, no metrô Ouvindo Sampa no walkman a walk on the wild side
Este sou eu Na esquina, de novo Tudo é tão novo quanto esta canção ?Será que alguém presta atenção?
De Belém do Pará, veio uma grande homenagem, quase um estudo sobre São Paulo, sua históia e seu cotidiano. Do mestre Billy Branco, Sinfonia Paulistana, cujo clipe encabeça esse texto, traduz a força de vontade e a disposição do paulistano. Lembro de pequeno, antes de ir para a escola, no café da manhã, comendo pão com napum* e café preto, minha mãe ligava o velho rádio a transistor na antiga rádio Jovem Pan, e vinheta do programa matutino daquele horário era um trecho dessa música e era como uma chamada ao paulista para o trabalho. "Vão bora, vão bora/Olha hora, vão bora, vão bora...". Eis a letra (comprida pacas):
*napum: requeijão cremoso, na língua do Plei (N. do P.).
SINFONIA PAULISTANA
Fazendo som com as estrelas, ligado no sideral Por Maria, fez poemas, nas praias do litoral As ondas contaram ao mar, por isso é que os oceanos No mundo inteiro cantados, cantarão mais cem mil anos E o homem entre mar e céu, tem canções por todo lado Louvado seja Anchieta, pra sempre seja louvado Navegante tem cantiga, que aprendeu no mar um dia Qualquer rota que ele siga, se não canta, ele assobia Cabelos cor da noite, pele de alvorada Cacique entregou ao branco, a filha amada Raízes de Brasil, chegaram até aqui Abençoado o colo dessa mãe antiga Por 400 anos feitos de cantiga, naquele doce embalo Da canção Tupi Na tez de uma paulista em cheiro de floresta A cor de jambo é a índia, que ninguém contesta De uma altivez que o Império nunca vira É a tradição, é a raça, é a nossa origem As coisas da história de São Paulo exigem A honra que se faça ao nome de Bartira, Bartira Era tudo, era o nada rio acima Que o paulista no peito ia vencer Pra fazer mais Brasil do que existia Já um tempo era pouco pra perder Reunindo oração e despedida na partida da horda triunfal Caçador da esmeralda perseguida Foi fazendo a unidade nacional Bandeiras, monções Já se dava por glória ao que se ia Porque mal se sabia se voltava E a benção levada já servia De unção para quem por lá ficava Nas monções quem seguia, na verdade Já partia cheirando à santidade Quem não via esmeralda ou não morria Povoava cidade mais cidade Bandeiras, monções, São Paulo Que amanheceu trabalhando São Paulo, que não sabe adormecer Porque durante a noite, paulista vai pensando Nas coisas que de dia vai fazer São Paulo, todo frio quando amanhece Correndo no seu tanto o que fazer Na reza do paulista, trabalho é Padre-Nosso É a prece de quem luta e quer vencer Bastante italiano, sírio e japonês Além do africano, índio e português Tudo isso ao alho e óleo, temperando a raça Na capital do tempo, tempo é ouro e hora Quem vive de espera, é juros de mora Não tem mais-mais nem menos, ou é sim ou não No máximo se espera pela condução Nas retas da Rio-São Paulo, chegando, chegando eu vim Paulista é quem vem e fica plantando, família e chão Fazendo a terra mais rica, dinheiro e calo na mão Dinheiro, mola do mundo, que põe a gente na tona Leva a gente ao fundo Sim, senhor, sim, senhor, sim, senhor Faz a paz e a guerra, traz a Lua pra Terra No mais aumenta a barriga do comendador Dinheiro, juras e juros, erguendo todos os muros Pra ele próprio depois, derrubar, derrubar É a voz que fala mais forte, razão de vida e de morte Também só compra o que pode comprar São Paulo, que amanhece trabalhando Casais entram no elevador O fino pra curtir um som: ran ran, ren ren, ron ron A noite é sempre uma criança, é só não deixar crescer Assim existe esperança, no amanhecer São coisas da noite, anúncios conhecidos Que enfeitam a cidade, em movimentos coloridos Alguém vem do trabalho, do baralho ou do que for Do La Licorne ao Ceasa, de alguma coisa do amor Tem sempre mais um, que vem pela calçada Na bruma que esconde quem sobrou na madrugada Dei tempo ao tempo, o tempo é que não dá Tenho que estar pelas sete, no Viaduto do Chá Olha o Sol, olha o Sol, cadê o Sol? Onde o Sol? Sumiu, sumiu, sumiu Quando amanhece, o Sol comparece por obrigação Nublado, cansado, um Sol de rotina Se bem ilumina, nem dão atenção É que o bandeirante não perde o seu tempo Olhando pro alto, o Sol verdadeiro está no asfalto Na terra, no homem e na produção A cor diferente do céu de São Paulo não é da garoa É véu de fumaça, que passa, que voa Na guerra paulista das mil chaminés São Paulo, que amanhece trabalhando Começou um novo dia, já volta Quem ia, o tempo é de chegar Do metrô chego primeiro, se tempo é dinheiro Melhor, vou faturar Sempre ligeiro na rua, como quem sabe o que quer Vai o paulista na sua, para o que der e vier A cidade não desperta, apenas acerta a sua posição Porque tudo se repete, são sete E às sete explode em multidão: Portas de aço levantam, todos parecem correr Não correm de, correm para Para São Paulo crescer Vão bora, vão bora, olha a hora Vão bora, vão bora, vão bora, vão bora Olha a hora, vão bora, vão bora, vão bora Que o tempo não espera, a vida é derradeira Quem é vai ser, já era de qualquer maneira O mundo é do "eu quero" Quem me der é triste, tristeza basta a guerra E o adeus no amor Você onde é que estava quando o tempo andou? Na terra que não pára, só você parou Vão bora, vão bora, olha a hora Vão bora, vão bora, vão bora, vão bora Olha a hora, vão bora, vão bora, vão bora O que vale é a versão, pouco interessa o fato Porque a sensação maior é a do boato Em coisa de um segundo, noite é madrugada Notícia ganha o mundo, e a gente não é nada Você onde é que estava quando o tempo andou? São Paulo nunca pára, mas você, parou Vão bora, vão bora, olha a hora Vão bora, vão bora, vão bora, vão bora Olha a hora, vão bora, vão bora, vão bora São Paulo que amanhece trabalhando Na Praça do Patriarca, rua Direita, São Bento Na Líbero Badaró, no Viaduto do Chá Lá está aquele moço, que não dá ponto sem nó Na conversa bem jogada, vai vendendo geladeira Pra esquimó curtir verão Papo firme é isso aí, desse dono da calçada Rei da comunicação Olhe aqui, dona Teresa, o produto de beleza Que chegou da Argentina, examina, examina De brinde pra seu marido Nova pomada pra calo que resolve a dor de ouvido Tem Parker 73, compre uma e ganhe três Nem paga o justo valor, mais outra ali pro doutor Leve a lei do inquilinato, mesmo não sendo inquilino Morar na lei é um barato, e ele prova à sua maneira Que um ataque de besteira, faz de um doutor um otário Cursando numa avenida o vestibular da vida Para ser bom empresário Ser do São Paulo, do Corinthians e Palmeiras É ter o fino em futebol durante o ano Em tênis, remo, natação, nas domingueiras Bom é Pinheiros, Tietê ou Paulistano Com Ademir, com Rivelino no gramado Com rei Pelé e suas jogadas de veludo Não pe de graça que São Paulo é chamado Melhor da América Latina em quase tudo Pró-esporte, pró-esporte é a solução Pró-esporte, pró-esporte contra a poluição Lá por setembro o estudante nos ensina Aquele esporte pelo esporte que não cede E o meu Mackenzie, dá um show com a medicina Na grande guerra que se chama MacMed No corre-corre mundial estamos nessa Os Fittipaldi estão aí para dizer Só em São Paulo que é a terra do depressa A São Silvestre poderia acontecer Pró-esporte, pró-esporte é a solução Pró-esporte, pró-esporte contra a poluição São Paulo jovem, dos que promovem velocidade Nos seus cavalos, de roda e ferro, na sua forma de liberdade O peito agarra, a costa de aço Que deu garupa na Yamaha, no upa-upa Feito de abraço e muito amor São Paulo jovem, na mesma cela Vão ele e ela, por onde seja Deus os proteja, pelos caminhos da vida em flor Tem coisas da Ipiranga, da Itapetininga, até da São João Às vezes também dá Puxar o show, o chope, o uísque, boa pinga E o molho das mulheres que transam por lá Tem loja, tem butique, tem pizzaria Boate, restaurante, até casa lotérica É rua que de nada mais precisaria Com todo aquele charme do Jardim América América, rua augusta E agora, já é hora E ninguém vai embora, embora de lá Rua augusta, e agora, já é hora E ninguém vai embora, embora de lá Bartira e João Ramalho nunca imaginaram Que a tanga e a miçanga vinham outra vez Agora nos diriam vendo que acertaram: Valeu o nosso amor, pelo amor de vocês E a moça vai passando, e ninguém vê mais nada Quando ela vai na dela, é pra machucar É a paulistana boa, despreocupada De short ou minissaia, pondo pra quebrar, pra quebrar Rua augusta, e agora, já é hora E ninguém vai embora, embora de lá Na sinfonia, que é de todos os barulhos De Santo Amaro, ao Brás, ao Centro, ao ABC Por Santo André, Vila Maria até Guarulhos Grande São Paulo, como eu gosto de você São Paulo, que amanhece trabalhando São Paulo que não pode amanhecer Porque durante a noite, paulista vai pensando Nas coisas que de dia vai fazer.
Mas além das homenagens rendidas por diversos brasileiros à São Paulo, os campos de Piratininga sempre foram férteis em musicalidade, e geraram safras e safras de nativos que fazem a boa música. Todos são incomensurávelmente importantes no cenário musical, mas tem um especialmente singular, tipo de coisa que só São Paulo pode gerar: um cientista que é artista. Paulo Emílio Vanzolini. Herpetólogo (= zoólogo especialista em peixes, anfíbios e répteis) e boêmio da noite paulistana, professor da USP que por muitos e muitos anos trabalhou (e ainda trabalha) no Museu de Zoologia, anexo ao Museu Imperial do Ipiranga. Também foi um dos idealizadores da FAPESP (Fundação de amparo à pesquisa do Estado de São Paulo). Na realidade, ele não é músico, mas compositor, e produziu uma pérola que é um dos simbolos do cancioneiro paulistano: Ronda, que foi gravada muitas vezes, mas ficou imortalizada na voz da baiana Maria Bethânia. A música, ao melhor estilo dos trovadores medievais, conta a história da desilusão de uma mulher, com desfecho trágico na noite paulistana:
RONDA
De noite eu rondo a cidade A te procurar sem encontrar No meio de olhares espio em todos os bares Você não está Volto pra casa abatida Desencantada da vida O sonho alegria me dá Nele você não está Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse Esse alguém me diria Desiste, esta busca é inútil Eu não desistia Porém, com perfeita paciência Volto a te buscar Hei de encontrar Bebendo com outras mulheres Rolando um dadinho Jogando bilhar E neste dia então Vai dar na primeira edição Cena de sangue num bar Da avenida São João
Nessa linha samba-canção, o compositor paulistano Eduardo Gudin, fez uma linda canção chamada Paulista, que faz uma alusão a avenida mais famosa da cidade, e que foi imortalizada pela voz divina da musa Vânia Bastos (vejam também o clipe):
PAULISTA
Na Paulista Os faróis já vão abrir E um milhão de estrelas Prontas pra invadir Os jardins Onde a gente aqueceu Numa paixão Manhãs frias de abril
Se a avenida Exilou seus casarões Quem reconstruiria Nossas ilusões? Me lembrei De contar pra você Nessa canção Que o amor conseguiu
Você sabe quantas noites Eu te procurei Nessas ruas onde andei? Conta onde passeia hoje Esse seu olhar Quantas fronteiras Ele já cruzou No mundo inteiro De uma só cidade
Se os seus sonhos Emigraram sem deixar Nem pedra sobre pedra Pra poder lembrar Dou razão É difícil hospedar No coração Sentimentos assim
Outra célebre mas pouco lembrada personalidade a música paulistana foi Miriam Batucada. Nascida Miriam Ângela Lavecchia, a moça do bairro da Móoca (o mesmo de meu pai), uma típica descendente de italianos, entrou para o cenário musical através do samba, que cadenciava batucando com as próprias mãos. A batucada ela aprendeu com uma colega em um salão de cabelereiros quando adolescente, a a obcessão dela com a percussão era tal que chegou a ser demitida do emprego de digitadora na Arno porque ficava batucando no teclado... Vinte anos de carreira, infelizmente poucos discos gravados (um deles em parceria com Raul Seixas), faleceu cedo, mas deixou esta bela canção que fora composta especialmente para ela:
O QUE VIER EU TRACO/TECO-TECO
Eu, quando canto meu sambinha batucada A turma fica abismada com a bossa que eu faço Mas eu não me embaraço porque não há tempo Marco meu contratempo dentro do compasso Quem não tiver o ritmo na alma Nem cantando com mais calma faz o que eu faço Samba canção, samba de black, batucada Isto, pra mim, não é nada, o que vier, eu traço
Teco, teco, teco, teco, teco na bola de gude era o meu viver Quando crianca, no meio da garotada, com a sacola do lado Eu só jogava pra valer Não fazia roupa de boneca nem fazia comidinha Com as garotas do meu bairro, que era natural Subia em poste, soltava papagaio e até meus 14 anos era esse meu mal
Com a mania de garota folgazã Em toda parte que eu chegava, encontrava um fã Quando havia festa na capela do lugar Era a primeira a ser chamada para ir cantar E assim vivendo, vi meu nome ser falado, em todo canto, em todo lado Até por quem nunca me viu E, hoje, a minha grande alegria é cantar com cortesia para o povo do Brasil
Ela também tinha adaptado a letra de Garota de Ipanema para a gíria paulistana. Ficou assim:
Ôrra que mina bacana Que lomba, meu chapa! Vou convidar ela, pra ir até a Lapa Comer macarrão com fruto do mar...
Para os que nunca ouviram hablar de Miriam Batucada, eu consegui esse vídeo no YouTube:
Mas talvez o artista que mais sintetiza o que é ser paulistano, descrevendo a vida do cidadão trabalhador e comum da grande metrópole seja o saudoso Adoniran Barbosa. Típico paulista decendente de italianos, nasceu em 06 de agosto de 1910, na cidade de Valinhos, interior de São Paulo. João Rubinato (seu nome de batismo) mudou-se para a capital ainda jovem, e acabou crescendo nos bairros mais típicos da cidade (Bixiga, Lapa, Penha, Móoca, Tatuapé, etc), convivendo com a miscelânea de imigrantes que abundavam na cidade na época, incorporou toda essa rica cultura misigenada e tornou-se o mais paulistano dos paulistanos. Cantou a luta e labuta do cidadão comum na cidade que nunca pára; transformou em samba essa mania brasileira de rir da própria desgraça e de ter fé na vida. Enfim, cantou a alegria do povo. Pai de sucessos como Trem das Onze (eleita a música da cidade de São Paulo), Samba do Arnesto, Saudosa Maloca, Inês, Torresmo a Milanesa, Ponte da Casa Verde, Samba Italiano, Iracema e tantos outros... Adoniran é reverencado até pelos sambistas do Rio de Janeiro, tendo sido inclusive procurado pelo mais ácido crítico do samba paulistano (Vinícius de Moraes, que havia citado) para musicar a letra de "Bom dia, tristeza". Adoniran teve suas músicas gravadas por vários artistas da nossa música, como Gal Costa, Ivete Sangalo (Trem das Onze), Elis Regina e Clara Nunes (Iracema), Martinho da Vila (Inês) e muitos outros. Abaixo segue um clipe de Adoniran cantando com a pimentinha no tradicionalíssimo Bar da Carmela, no Bixiga:
Você, leitor vitorioso que teve a paciência de ler esse texto até o fim, deve estar se perguntando como alguém pode ter um gosto musical tão eclético quanto esse tal de Rodrigo Plei, que foi capaz de passar do samba-canção ao punk-rock como se tudo estivesse em um continuum musical?
Eu mesmo não sei.
Talvez porque eu seja o avesso do avesso do avesso do avesso, como dizia a minha avó, fazendo alusão ao meu gênio confuso com a música de Caetano Veloso à minha cidade.
Porque sou o avesso do avesso do avesso do avesso, como a cidade de São Paulo.
Salamaleikum, bênção, axé, shalom, namastê.
Plei
PS: Os nomes de artistas ou bandas que aparecem sem link no texto estão devidamente linkados no começo do mesmo (N. do P.).
Mas o que é o cetismo? O que é uma atitude cética? Muitas pessoas confundem esse conceito e acabam por deturpá-lo. Às vezes por ingenuidade, às vezes (infelizmente!) por pura maldade mesmo.
Cetismo vem do grego skeptomai, que poderia ser traduzido como investigar, considerar, ponderar e outros sinônimos do gênero. Grosso modo, o cetismo é uma atitude de questionamento frente a um fato, filosofia, idéia, etc.
Na prática, o cetismo se divide em duas vertentes: o cetismo científico, que é uma postura científica e prática, em que alguém questiona a veracidade de uma alegação, e procura prová-la ou desprová-la usando o método científico; e o cetismo filosófico, uma postura filosófica em que pessoas escolhem examinar de forma crítica se o conhecimento e percepção que possuem são realmente verdadeiros, e se alguém pode ou não dizer se possui o conhecimento absolutamente verdadeiro (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A9tico). Eu me encaixo nas duas definições, mas por conta da minha profissão, sou muito mais inclinado à primeira categoria do que a última (Humm, redundante isso, mas vá lá...).
A antítese do cetismo é o dogmatismo que, novamente grosso modo, é uma visão de mundo que pretende ter explicações absolutas e inquestionáveis para tudo; é, pois, baseada no dogma que, no campo filosófico, é uma crença/doutrina imposta, que não admite contestação (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dogmas).
No cetismo, portanto, a dúvida é o preceito mais importante, ao passo que no dogmatismo, é a certeza (independente se verdadeira ou não) que norteia essa visão visão filosófica. Enquanto a primeira é a mais comum entre cientistas e pessoas mais, digamos, racionais, a última é a visão predominamte entre os fundamentalistas religiosos.
Ocorre que muitas vezes pessoas confundem ambos conceitos escorados na própria vaidade; aí o negócio desgringrola de vez. Há céticos e "céticos". Os que estão entre aspas acham muito bonitinho desqualificar todos os que não pensam como eles, ridicularizando crenças, supertições, e conceitos "alternativos" baseados em uma suposta "superioridade" (???) intelectual. Ao passo que os dogmatistas se deliciam ao taxar perjorativamente todos céticos de "impuros", "incapazes de ver a verdade", "satanistas" e outros adjetivos tão carinhosos quanto, desta vez baseados em um suposta "superioridade" (???) espiritual. Entre esses dois extremos encontramos os verdadeiros céticos (aqueles sem aspas) e os dogmatistas moderados.
Mas hoje aqui quero falar dos céticos com aspas, que doravante vou chamar simplesmente de céticuzinhos. Sobre os fundamentalistas, vou discorrer em outra oportunidade.
Você leitor agora deve ter notado uma certa dose de veneno no modo como eu grifei esse pequeno neologismo, tornando-o, agora, perjorativo.
Mas essa é exatamente a intenção.
Desde que me filiei ao site de relacionamentos Orkut, notei que a existência de céticuzinhos é especialmente relevante no mundo virtual. No mundo real eles são beeemmm mais escassos, haja vista que em 31 primaveras de existência eu nunca conheci unzinho sequer pessoalmente. Nem pra remédio. Minha amostra é, portanto, extremamente viciada.
Mas para os propósitos deste ensaio, serve. Há uma legião bem disseminada de céticuzinhos que se declaram ateus. Mas eles não são ateus porque não acreditam na existênciaquaisquer deidades (para os que não sabem, essa é a definição de ateu). São ateus porque não querem que nada sobrenatural exista, quiçá deixe a menor possibilidade de existência no ar... Se declaram ateus porque se acham céticos. Mas o que o céticuzinho não sabe (ou finje que não sabe) é que ser cético não é necessáriamente não acreditar em deus(es), qualquer que seja, uma vez que a atitude cética é duvidar e investigar, e não descartar totalmente todas as possibilidades. Nesse sentido, o céticuzinho em nada difere do dogmatista...
Mas, por favor, não interpretem errôneamente o parágrafo acima. Eu pessoalmente não tenho, nunca tive, e nunca terei absolutamente nada contra os ateus. Só estou analizando o ateísmo sob a ótica do céticuzinho.
O que também me impressiona nos céticuzinhos é a quantidade de tempo livre que eles dispõem para "debater" nos fóruns virtuais. Na realidade, acho que para o céticuzinho nada há de mais prazeiroso do que "debater". Desbanca o sexo, o futebol, o cinema, a praia, a família... Enfim, todos esses prazeres mundanos e irrelevantes (para o céticuzinho, é claro). Mas reparem as aspas (novamente) na palavra debater. É que, para o céticuzinho, as toneladas de ataques ferrenhos às idéias/religiões/opções alheias é debater. Pobre céticuzinho, mal sabe ele que o debate passa longe do ad hominem gratuito e desnecessário, não raro incremetados por generosísimas doses de xiliques, pitis e faniquitos, evidenciados pelas risadinhas nervosas ao final de cada parágrafo. Mais uma vez, aqui o céticuzinho em nada difere do seu suposto oponente intelectual, que é o dogmatista.
Chego a pensar que, na realidade, o céticuzinho é uma espécie de dogmatista às avessas. As razões são diferentes, mas o fundamentalismo, o ódio, são os mesmos.
Mas, qual será o futuro do céticuzinho? Irão eles dominar a sociedade com suas idéias céticuzinhas? Felizmente, na minha opinião, não. Porque? Porque o céticuzinho não sai do Orkut.
Existirmos: a que será que se destina? Pois quando tu me deste a rosa pequenina Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina Do menino infeliz não se nos ilumina Tampouco turva-se a lágrima nordestina Apenas a matéria vida era tão fina E éramos olharmo-nos intacta retina A cajuína cristalina em Teresina
Acho que não é mais segredo para ninguém que meu artista preferido é, sempre foi e provavelmente sempre será o Caetano. E quando digo artista preferido, eu estou considerando a obra, e não a pessoa. Eu, como admirador do artista, sei que ele muitas vezes não é coerente nas idéias ou posições expressas ou ditas, mas isso em nada ofusca a arte que ele produz e, lembremos, ele é apenas humano, como eu e você.
Portanto, anti-caetanistas, anti-MPBzistas e anti-brasileiros de plantão: larguem as suas pedras, não haverá necessidade de joga-las (nem em mim, nem no gênio baiano). Pelo menos não hoje.
Todos os que me conhecem já devem ter percebido minha "Caetania" em algum momento da nossa convivência. O que poucos sabem, no entanto, é que "Cajuína", cuja letra está no início desse texto, é a minha música preferida desse compositor. Obviamente, a letra, a melodia e os significados (implícitos e explícitos) desta música são belíssimos. É uma verdadeira obra-prima em língua portuguesa, em meros 8 versos, 56 palavras e 299 letras. Coisa até corriqueira para a genealidade desse baiano do recôncavo.
Mas tem algo sobre a letra que poucos sabem, e que quero deixar aqui registrado.
Reza a lenda que Caetano fez essa música depois de uma experiência pessoal-espiritual em uma das suas turnês. Conta-se que ele iria tocar em um clube em Teresina, capital do Piauí. Havia um rapaz do interior do estado que juntou um dinheirinho para comprar o ingresso e a passagem de ônibus para assistir ao Caetano na capital. Parece que esse rapaz era bem humilde e pobrezinho, mas fez questão de levar presentes para o artista, que tinha esperanças de encontrar depois do show. Os presentes que o moço estava levando eram uma garrafa de cajuína e uma rosa.
Ocorre que houve um acidente com o ônibus que ia para Teresina e o rapaz faleceu.
Alguns meses depois, o pai do rapaz teria enviado a Caetano uma carta falando do sinistro ocorrido com o filho junto com uma foto recortada de um jornal de Teresina. Na foto, tirada do público durante o show, aparecia o filho que havia morrido, portando a garrafa de cajuína e a rosa - os presentes que ele queria dar para Caetano.
Caetano então ficou tão impressionado e emocionado, que compôs essa música em homenagem ao moço. Quem agora sabe da estória pode ver seu significado na letra da música.
Mas reparem que eu usei termos como "reza a lenda", "conta-se", "parece", "teria". Isso foi proposital, pois no momento não tenho como verificar a autenticidade desta estória. Eu me lembro de ter lido em algum lugar, não lembro se em uma revista ou se em algum site da internet. [Anti-cético mode on] Sorry, incrédulos de plantão, mas nem a revista e nem o site eram espíritas ou tinham qualquer coisa a ver com espiritismo[Anti-cético mode off]. Vou tentar checar essa informação com a acessoria de imprensa do Caetano, mas não acho que esse é o tipo de e-mail que eles estariam dispostos a responder, nem acredito que uma mensagem minha com essa pergunta chegaria ao próprio Caetano.
Portanto, por hora, concedo-me o benefício da dúvida.
E o extendo a você, leitor.
Em tempo: a figura que ilustra o texto é a capa do disco "Cinema Transcedental", de 1979, quando "Cajuína" foi gravada pela primeira vez.